9.11.12

Trajetórias opostas sem jamais deixar de se olhar

Gonzaga - de pai pra filho*, de Breno Silveira (Dois filhos de Francisco, À beira do caminho), é mais uma merecida homenagem a Luiz Gonzaga, no ano de seu centenário. Com um competente elenco, o filme enfoca a vida do nosso mestre desde a adolescência e percorre toda sua carreira - o começo difícil, o auge, o ostracismo e a volta, com destaque para seu relacionamento conturbado com o filho Luiz Gonzaga Júnior.

O nascimento do filho, em 1945, coincidiu com outros eventos de grande importância e mesmo determinantes na vida futura de Luiz Gonzaga, desde a gravação dos primeiros discos como cantor, até o encontro com Humberto Teixeira, com quem criaria o baião, ritmo que dominaria o cenário da música brasileira até o surgimento da bossa nova, em 1958. Gonzaga viu-se, então, entre a carreira - incipiente, mas ascendente - e a criação do filho, cuja mãe morrera precocemente. Sem poder cuidar dos dois, optou pela carreira, com o pensamento de viabilizar, mais pra frente, a dupla responsabilidade, o que, por uma série de fatores, e entre uma e outra tentativa malsucedida, nunca vingou. O menino foi criado no morro de São Carlos pelos padrinhos, Dina e Henrique, casal de amigos que recebera seu pai no Rio de Janeiro.

O fato de terem crescido em ambientes e culturas tão díspares só realçou as diferenças entre pai e filho, o que, aliado a uma natural denegação da influência do primeiro sobre o segundo, refletiu-se na música deste, bastante desvinculada do viés nordestino da música daquele. Outra diferença: Gonzaguinha compunha quase sempre só, Gonzaga, quase sempre não. Em comum, o talento para a música, transmitido de pai pra filho.

A música de Luiz Gonzaga e seus parceiros carrega a emoção mais contida do sertanejo, o falar cantando, o aboio em forma de canção, o norte. Quer em ritmo de alegria, leveza ou ingenuidade com um toque de malícia, quer em tom de introspecção, lamento, saudade ou resignação, os sentimentos e comportamentos são sempre confrontados com elementos comuns à realidade sertaneja, voltados àquele microuniverso, por meio de linguagem própria e bem peculiar:

Mandacaru quando fulora na seca / é o sinal que a chuva chega no sertão / toda menina que enjoa da boneca / é sinal de que o amor já chegou no coração”, “Assum preto, meu cantar / é tão triste como o teu / também roubaram o meu amor / que era a luz, ai, dos olhos meus”, “Saudade assim faz roer e amarga que nem jiló”, “Quando a ribaçã de sede / bateu asas e voou / foi aí que eu vim me embora / carregando a minha dor”, “Ai, juazeiro / ela nunca mais voltou”, “Tendo um coração vazio / vivo assim a dar psiu / sabiá vem cá também”, “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação...

A música de Gonzaguinha é urbana e reflete o ritmo de vida acelerado, de emoções exacerbadas, o cantar falando, verbos soltos em desabafo, o desnorte. Expõe nossas limitações e os limites a que somos expostos diante desse quadro, de forma incisiva: “não dá mais pra segurar, explode coração”, “só sinto no ar o momento em que o copo está cheio e que já não dá mais pra engolir”, “coração na boca, peito aberto, vou sangrando”. Não por um linguajar contundente, mas pelo caráter autobiográfico, Com a perna no mundo** tem forte carga emocional e beleza redobrada.

Ao mesmo tempo, e em contraponto, Gonzaguinha destila versos doces, como em Espere por mim, morena ou Diga lá, coração e mensagens afirmativas: “eu acredito é na rapaziada / que segue em frente e segura o rojão”, “eu sei que a vida devia ser bem melhor e será”, “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”, “eu apenas queria que você soubesse que aquela alegria ainda está comigo”. Maria Bethânia, Simone e Elis Regina foram suas melhores intérpretes.

Posicionamento político era outra diferença visível entre pai e filho. Gonzaga Jr. pertence a uma geração cujo fim da adolescência coincide com o início do período de ditadura militar no Brasil. Durante a faculdade, iniciou seu engajamento político, junto com sua carreira musical, ao participar do movimento artístico universitário (MAU), ao lado de Ivan Lins, Aldir Blanc e outros. O movimento prosperou e, no início dos anos 70, gerou como frutos disco e programa de tv (Som Livre Exportação). Logo depois, Gonzaguinha lançou seu primeiro LP, que incluía Comportamento geral, sua irônica e mais conhecida canção de protesto (“Você merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal / Cerveja, samba e amanhã, seu Zé / Se acabarem com teu carnaval?”).

O filme faz uma retrospectiva da vida de Luiz Gonzaga, tomando por base um depoimento real do rei do baião a Gonzaguinha. Num interessante recurso, os momentos mais importantes de suas carreiras são mostrados ora em cenas filmadas, ora em imagens reais, culminando com o primeiro encontro entre pai e filho no palco, num show em 1981, cantando Vida de viajante. A volta de Gonzaga a Exu, depois da fama, por tantas e brilhantes vezes contada e cantada por ele, é bem ilustrada no filme, bem como sua boa relação com o pai Januário e a grande influência deste em sua carreira.

Um Luiz, outro Luiz. Quase partiram juntos. Um luz, outro reluz. Não importa que Exu e São Carlos não sigam a mesma doutrina, que a longa avenida de gás neon não se encontre com a estrada de Canindé ou que o riacho do navio não deságue no lindo lago do amor. Nesse imenso salão ou numa sala de reboco, num pé de serra pernambucano ou num morro carioca, no sertão ou perto do mar, a essência da arte é a mesma: vida (e vice-versa). E essas duas, particularmente, os seguintes versos de Gonzaguinha parecem, por simples acaso, definir com precisão: “Para quem bem viveu o amor, duas vidas que abrem não acabam com a luz. São pequenas estrelas que correm no céu, trajetórias opostas, sem jamais deixar de se olhar”.


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