27.10.12

Receita de doces bárbaros

Chico e Bethânia, Caetano e Chico, Luiz Gonzaga e Fagner, Elis e Tom, Pessoal do Ceará (Ednardo, Amelinha e Belchior), Vinícius, Maria Medalha e Toquinho, a música brasileira já nos brindou com memoráveis encontros, em geral ao vivo, a maioria em dupla, alguns em trio. Afora obras coletivas como Tropicália ou Panis et circensis e Clube da esquina, há, também, outros trabalhos reunindo mais do que três artistas, como O Grande encontro (Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Elba e Zé Ramalho), Cantoria (Elomar, Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo), Tom . Vinícius . Toquinho . Miucha e Doces bárbaros, formação musical que uniu, em 1976, Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Os quatro amigos baianos reuniram-se, em trabalhos conjuntos, por várias vezes. Caetano, que iniciara a carreira com Gal, em Domingo, viria juntar-se a Bethânia, num disco ao vivo (1978), a Gil, em Barra 69 e Tropicália 2 (1993) e a Gil e Gal no disco Temporada de verão - ao vivo na Bahia (1974). Sem Gal e com Bethânia, os dois compositores dividiram microfones e juntaram vozes com João Gilberto, em Brasil (1981). Já na citada obra coletiva que marcou o tropicalismo (Tropicália ou Panis et circensis), dos quatro, apenas Bethânia ficou de fora. Com Doces bárbaros, porém, via-se, pela primeira vez, os quatro reunidos num mesmo trabalho, o que só ocorreu novamente em show registrado no documentário Outros (doces) bárbaros (Andrucha Waddington, 2002).

O trabalho a quatro vozes dos doces bárbaros representou rara oportunidade de reunir ingredientes como ousadia, performance de palco, qualidade vocal e sensibilidade poética. Do encontro, resultou disco ao vivo, documentário e uma série de shows. A reunião do grupo veio pouco depois do retorno de Caetano e Gil do exílio em Londres, que, por sua vez, marcou o fim e sucedeu o movimento tropicalista.

"Com amor no coração, preparamos a invasão" - Depois de tantas, tão intensas e recentes mudanças, a invasão era então mais doce, pacífica, mas ainda assim, ou talvez por isso mesmo, provocativa. Embora a subversão ou transgressão deles fosse mais no âmbito comportamental, de costumes, em tempos de ditadura e recém-chegados do exílio, eles eram cobrados quanto a posições políticas. "Por que um grupo tão doce, no atual momento da conjuntura nacional?" - perguntou um jornalista, em entrevista coletiva do grupo, por ocasião do lançamento do show. Esta e outras interessantes passagens são exibidas no documentário Os doces bárbaros (Jom Tob Azulay, 1976), cuja equipe acompanhou o quarteto em apresentações, bastidores, ensaios e entrevistas.

"Tudo ainda é tal e qual e no entanto nada igual" - Essa doce e bárbara invasão, no meio da década de 70, representaria uma espécie de rito de passagem na carreira do quarteto. Como disse Caetano na ocasião, "eu não sei dizer o que é propriamente novo, como temática, nos doces bárbaros, a não ser o fato simplíssimo de estarmos os quatro juntos, sem teorizar muito". De fato, num período pós-tropicalista, que sucedia décadas de intensa e rica produção cultural, inclusive da parte deles, "os quatro cavaleiros do após-calipso" não tinham muito o que inventar, nem tinham essa pretensão.

Todos então com mais de trinta (Bethânia, a mais nova dos quatro, completaria essa idade naquele ano), eles assumiriam, dali pra frente, uma postura mais madura e atingiriam, então, o auge de suas carreiras e um lugar definitivo entre os grandes nomes da nossa música popular. Depois de cantar Caymmi, Gal, com Caras e bocas, chegaria ao topo das paradas com Tigresa, de Caetano, que lá estava com Qualquer coisa. Bethânia logo atingiria a condição de diva, sobretudo com o lançamento do disco Pássaro proibido, que tinha como destaque uma de suas interpretações de maior sucesso, Olhos nos olhos, de Chico Buarque.

Gil acabara de lançar o excelente álbum Refazenda, cujo título reunia ideias bem pertinentes. Primeiro, a percepção de que, se não havia o que inventar, seria possível reprocessar, refazer. Ademais, o prefixo “re” tanto encerrava a ideia de repetição quanto de volta - às raízes, ao interior (ao qual também remete o termo fazenda) do ser e do estar, ao país, no pós-exílio. O mote seria usado novamente em Refavela, seu disco seguinte e também em Refestança, ao vivo com Rita Lee, embora o compositor, ao referir-se à trilogia “Re”, considere Realce o terceiro trabalho da série. Por sinal, o novo disco de Gal, Recanto, com canções de Caetano, poderia bem ser a continuação dessa sequência de Gil, por representar, a partir do título - e da própria concepção - os mesmos conceitos: o cantar de novo, refazer o canto, buscar um novo canto, num novo recanto.

O repertório do disco e do show Doces bárbaros era, quase todo, formado por composições de Caetano e Gil. As interpretações de Bethânia em Um índio (Caetano), Gal e Bethânia em Esotérico (Gil) e os quatro juntos em Atiraste uma pedra (Herivelto Martins / David Nasser), Fé cega, faca amolada (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos) e Os mais doces bárbaros* (Caetano) eram alguns dos belos momentos do encontro. O seu amor (Gil) pregava o amor livre e parodiava slogan ufanista utilizado durante o regime militar: Brasil, ame-o ou deixe-o (“O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”). Amor, misticismo, sincretismo religioso, natureza, diferentes temas, diferentes formas. Viva qualquer coisa.

 




* Os mais doces bárbaros (Caetano Veloso)

Com amor no coração
Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada

Peixe Espada, peixe luz
Doce bárbaro Jesus
Sabe bem quem né otário
Peixe do aquário nada

Alto astral, altas transas, lindas canções
Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons

Com a espada de Ogum
E a benção de Olorum
Como um raio de Iansã
Rasgamos a manhã vermelha

Tudo ainda é tal e qual
E no entanto nada igual
Nós cantamos de verdade
E é sempre outra cidade velha