3.6.11

Um dia em 67

Há algum tempo, tive acesso a esta foto histórica (clique para ampliar) que, pelas figuras retratadas, encanta qualquer amante da música popular brasileira. Ao mesmo tempo, a imagem desperta curiosidade sobre que acontecimento tão especial teria provocado a reunião de tantos talentos (tente identificá-los e, ao final do texto, veja a lista dos ilustres figurantes da clássica foto*).

Soube, depois, por matéria de O Globo, que o registro aconteceu em 1967, num encontro na casa de Vinícius de Moraes, convocado pelo produtor musical João Araújo - pai de Cazuza e que viria a ser presidente da gravadora Som Livre -, com o objetivo de discutir o declínio da música carnavalesca. Discutia-se nem tanto a queda na qualidade das canções, mas na quantidade de lançamentos musicais ocasionada, no caso do Rio de Janeiro, por conta do crescimento das escolas de samba e seus sambas-enredo restritos ao desfile, em detrimento das marchinhas.

Nessa época, a falta de renovação começava a ocorrer, também, no Recife, por conta de fatores como o forte apego às tradições e a concentração econômica maior no eixo Rio-São Paulo, que contribuiu para o declínio do frevo e resultou, inclusive, no encerramento das atividades da Rozenblit, importante fábrica de discos local.

João Araújo diz que, até hoje, falta trilha sonora ao carnaval carioca: "Fui ver os blocos em Ipanema, era uma multidão impressionante, mas sem cantar. Não tinha música. Aí não é carnaval". Em Pernambuco, há música, mas não há renovação e, no caso da Bahia, cujo carnaval cresceu com o advento do trio elétrico e o incentivo de músicos conceituados como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Moraes Moreira e Armandinho, se a falta de renovação, hoje em dia, não é um problema, existem críticas com relação a qualidade e repetitividade de fórmulas em certas novas canções.

Recentemente, houve grande discussão sobre essa questão da má qualidade das músicas, por conta de críticas feitas por Rachel Sheherazade, à época apresentadora de um jornal local na TV Tambaú – PB e atual âncora do SBT Brasil. Apoiada por uns e criticada por outros, a apresentadora também questionou, com métodos jaborianos, outros aspectos da folia. Um blog parceiro, 3C1P, por meio do qual cheguei ao vídeo, afirmou, em texto sobre o assunto: "O carnaval é, sim, um momento diferente, de relaxamento daquele policiamento crítico do qual nós, pseudo-intelectuais de classe média, nos valemos para nos diferenciarmos do resto da massa inculta do país".

Concordei e comentei, na ocasião, que, além de o conceito do que é boa música ser relativo e patrulhamento não combinar com carnaval, festa essencialmente espontânea, essa diversidade já existia nos "carnavais de outrora", quando havia músicas de letras mais elaboradas, como "quanto riso, oh, quanta alegria / mais de mil palhaços no salão / arlequim está chorando pelo amor da colombina / no meio da multidão", mas também outras de letras mais simples, feitas apenas pra tirar o pé do chão mesmo, como "as águas vão rolar / garrafa cheia eu não quero ver sobrar / eu passo a mão na saca-saca-saca-rolha / e bebo até me acabar" ou "a-lá-lá-ô ôôô ôôô / mas que calo-ooo-oor".

Uma pergunta-chave, originadora do impasse, está no cerne da questão: o carnaval deve ser evento de massa ou restrito a grupos menores? A primeira opção, como o próprio nome diz, não se sustenta sem a participação... da massa, grupo muitas vezes, e ironicamente, sem tanto apego ao que se costuma chamar de cultura popular e, por isso, discriminado por formadores de opinião. Por outro lado, um maracatu tradicional como o Leão Coroado, com quase 150 anos de existência (a turma é da época do império, da escravidão, isso é muito significativo!), não tem o mesmo poder de atração sobre foliões, em sua maioria jovens, a não ser que vista uma capa pop, o que não faz nenhum sentido.

Nesta discussão entre o carnaval ser evento para muitos ou para poucos, há problemas, também, de ordem técnica, em relação ao alcance do som, que pode variar bastante entre aquele emitido por um trio elétrico, uma apresentação de palco, uma orquestra de frevo ou maracatu itinerante. Em suma, o conflito e, ao mesmo tempo, a solução está em procurar conciliar novo e antigo, vanguarda e tradição, popular e clássico. Afinal, blocos tradicionais são fundamentais, indispensáveis, mas usam, muitas vezes, linguagem e temas que podem soar estranhos aos mais jovens, que não se sentem representados por músicas que evocam o passado, os antigos carnavais.

Em Pernambuco, com a falta de renovação nos ritmos tradicionais, a modernidade no carnaval teve que vir por meio de sons a princípio alheios ao evento, mas que foram incorporados à festa. Um exemplo é o festival Rec-Beat, surgido no rastro do manguebeat, que, hoje, equilibra melhor a existência entre novo e antigo, como deve ser. Da mesma forma, se os atuais fenômenos de massa do carnaval baiano não agradam, lá também existem os cantores mais antigos, afoxés e blocos afro tradicionais, como o Ilê-Ayê.

A discussão provocada pelo encontro de 67 permanece atual, passadas quase cinco décadas. Se substituirmos música tradicional por norma culta, vejo semelhanças com a polêmica do livro adotado recentemente pelo MEC, "Por uma vida melhor", ou seja, não existe música boa ou ruim, mas adequada ou inadequada. Se a música tradicional (ou norma culta), de que costumo ser seguidor, fosse a única forma válida de comunicação, muitos estariam sujeitos ao mais profundo, injusto e gritante silêncio. Creio que a comunicação é muito mais, manifesta-se de várias formas e não devemos nos limitar a uma música (ou norma) oficial que, sejamos realistas, a maioria dos brasileiros não escutam (ou falam). Por uma vida melhor.


* 1 – Edu Lobo, 2 – Tom Jobim, 3 – Torquato Neto, 4 – Caetano Veloso, 5 - Capinan, 6 – Paulinho da Viola, 7 – Sidney Miller, 8 – Zé Ketti, 9 – Olívia Hime, 10 – Helena Gastal, 11 – Luís Eça, 12 – João Araújo, 13 – Dori Caymmi, 14 – Chico Buarque, 15 – Francis Hime, 16 – Nelson Motta, 17 – Não identificado, 18 – Vinícius de Moraes, 19 – Dircinha Batista, 20 – Luís Bonfá, 21 - Tuca, 22 – Braguinha

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