26.6.11

A nova imagem do som

As redes de televisão abertas, que já produziram bons programas no passado, têm se repetido, em sua maioria, em busca de uma audiência fácil e imediata, com poucas novidades interessantes. Além disso, noticiários e novelas gravitam em torno do eixo Rio-São Paulo, ignorando, de certa forma, o que não corresponde ao carioca-paulista way of life ou o que acontece no resto do país.

A pretexto de globalizar, pelo menos uma dessas emissoras tem o hábito de “neutralizar” o sotaque de seus artistas, cariocas ou não. Particularmente, o sotaque dos nordestinos é “suavizado” ou, quando se faz presente em séries e novelas cujas tramas acontecem na região, é retratado de forma caricata, pouco semelhante à real. Falando de caso que conheço, em Pernambuco, até programas de exibição local possuem apresentadores sem sotaque próprio do estado e mesmo os nativos são “domesticados”.

Diante desse quadro, uma outra emissora, a MTV, tem se destacado pela ousadia de colocar um nordestino – e mais importante, seu sotaque - como apresentador de programa: o cantor pernambucano China. Na Brasa (segunda a sexta, 20h30), a despeito de ser mais voltado ao público jovem, apresenta atrações interessantes também aos mais maduros. China começou a carreira como vocalista da banda Sheik Tosado, que chegou a se apresentar no Rock in Rio 3, em 2001. Hoje, além do programa televisivo, divide-se entre carreira solo e a banda Del Rey, onde interpreta canções de Roberto e Erasmo Carlos, junto com integrantes do grupo pernambucano Mombojó.

A MTV mudou, este ano, sua grade de programação, voltando-se um pouco ao formato inicial, de exibição de clipes (estranhamente reduzida num passado recente). Tem apresentado, também, vinhetas e campanhas com frases como: “A MTV é contra qualquer tipo de preconceito”, atitude louvável, em se tratando de emissora que tem como audiência um público essencialmente jovem, muitos deles adolescentes, com personalidade ainda em formação.

O maior destaque dessa nova fase da MTV é o programa musical Grêmio Recreativo, exibido sempre na última quinta-feira de cada mês, às 23h30. A atração é comandada pelo cantor e compositor Arnaldo Antunes, que recebe convidados. Após curto ensaio, os músicos apresentam-se ao vivo, todos juntos ou em grupos, interpretando canções de suas autorias. Estão previstos dez programas, sendo o último em dezembro próximo. Na edição deste mês de junho, que vai ao ar no próximo dia 30, a atração tem como convidados especiais Erasmo Carlos, Wanderléa, Vanessa da Mata e o supracitado China. Na edição seguinte (28/07), Marisa Monte, Adriana Calcanhoto e Jorge Mautner estarão presentes.

As três primeiras edições registraram momentos únicos, reunindo nova e velha geração, como o encontro entre Odair José, Paulo Miklos e Otto na segunda e os parceiros de Arnaldo Antunes - Marcelo Jeneci, Ortinho, Marina Lima e Pepeu Gomes - na terceira. Marina e Pepeu compuseram, com o anfitrião, Grávida (única parceria da dupla) e Alma, respectivamente, canções que fizeram parte do set list dessa edição e, certamente, estão entre as melhores composições deles.

Grávida* é bastante representativa do estilo de compor de Arnaldo Antunes e não poderia estar de fora de um programa comandado por ele. É uma canção que expressa a sensação de plenitude alcançada por quem concebe, gera e dá à luz algo num sentido mais amplo ou simplesmente observa o mundo com olhos mais atentos e sensíveis. Qualquer ser humano engravida, todos os dias, daquilo que está à sua volta. Toma à luz, absorve, alimenta, processa e dá à luz. E o que surge é resultado disso tudo, como a própria canção. Assim que, sem nunca terem engravidado no sentido estrito, a dupla de compositores pariu uma obra de arte.

Seguindo a trilha estranha aos olhos dos mais antigos, de criar fama a partir de postagens de vídeos no YouTube, outra figura carismática, PC Siqueira, foi descoberta pela MTV e escalada para o programa PC na TV (quinta-feira, 23h). O novo apresentador guarda certas semelhanças com o veterano e também carismático VJ Thunderbird, inclusive por fugir a certos padrões estéticos limitadores, seguidos, de modo geral, pelas emissoras de televisão. O programa, despretensioso, tem algumas besteiras, mas é divertido, bom para as horas vagas do cérebro.

Talvez para não ter que pagar mais direitos autorais, a televisão tem relegado a música, salvo exceções vindas de emissoras públicas e/ou diferenciadas - como as TV's Brasil e Cultura - ou de programas em horários pouco atrativos, como Som Brasil e Por toda minha vida, da Globo. Para quem teve o prazer de assistir, em horário dito nobre, a programas musicais insuperáveis, como a série Grandes Nomes ou Chico & Caetano, nos anos 80, torna-se difícil ficar entusiasmado com qualquer coisa, mas, ainda assim, é gratificante ver uma emissora que carrega música no nome concebê-la em vários sotaques, estilos, idades.



* Grávida (Arnaldo Antunes / Marina Lima)

Eu tô grávida
Grávida de um beija-flor
Grávida de terra
De um liquidificador
E vou parir um terremoto
Uma bomba, uma cor
Uma locomotiva a vapor, um corredor

Eu tô grávida
Esperando um avião
Cada vez mais grávida
Estou grávida de chão
E vou parir sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Dar à luz

Eu tô grávida
De uma nota musical
De um automóvel
De uma árvore de Natal
E vou parir uma montanha
Um cordão umbilical
Um anticoncepcional, um cartão postal

Eu tô grávida
Esperando um furacão
Um fio de cabelo, uma bolha de sabão
E vou parir sobre a cidade
Quando a noite contrair
E quando o sol dilatar
Vou dar à luz

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