2.4.11

Música política brasileira

Algumas amostras de pitadas de tempero político no menu da música brasileira

Por conta da esporadicidade de eleições e da censura aos meios de comunicação no Brasil, após o golpe militar que completou, esta semana, 47 anos, os comícios – eventos, hoje em dia, sem graça e quase extintos, frutos de campanhas políticas mais insossas e menos empolgantes -, tinham, então, alguma graça. Havia uma divisão clara entre os que apoiavam ou não a dita desdita, entre esquerda e direita, o que contribuía para que, partindo da oposição, esses eventos se tornassem, ao mesmo tempo, uma espécie de grito de protesto e um programa de domingo. Era, também, uma época de muita força na música popular brasileira, o que proporcionou uma junção de política com música, cujas afinidades eram visíveis até nas siglas que as representavam, MDB e MPB.

As primeiras eleições diretas para governador durante e logo após o fim da ditadura e a campanha pelas diretas pra presidente renderam memoráveis comícios, com a presença de artistas de peso. Além das músicas de protesto, os programas eleitorais contavam com versões e jingles empolgantes. Em 1986, a campanha de Miguel Arraes para o governo de Pernambuco teve como música de fundo uma versão de Tô voltando, interpretada por Teca Calazans: “Olha nos olhos do povo e vai notando que um brilho novo está voltando...”. E um repente fazia referência ao fato de ele ter sido deposto, por ocasião do golpe militar: “Volta Arraes ao Palácio das Princesas, vai entrar pela porta que saiu”. Emocionante.

No entanto, nem só de jingles e suas mensagens diretas vivia a política de misturar música com política. Uma canção dos anos 70, A tonga da mironga do kabuletê (Vinícius e Toquinho), por exemplo, guarda, até hoje, um certo folclore em torno de sua letra: “... Vou lhe rogar uma praga, eu vou é mandar você pra tonga da mironga do kabuletê”. Correm duas versões a respeito do significado da expressão que a intitula.

Uma das versões diz que não significa nada, trata-se apenas de uma junção aleatória de palavras de origem africana e outra diz tratar-se de um palavrão, que não cabe, aqui, citar e que, na música, teria como alvo o governo militar. Toquinho já disse, em entrevista na qual ratificou a versão do palavrão, que a expressão fora escutada pela então esposa de Vinícius, Gessy, no Mercado Modelo, em Salvador. De um jeito ou de outro, creio que o que menos interessou à dupla foi averiguar a origem ou significado daquilo.

Outra mostra de que o cunho político que envolvia algumas canções era, por vezes, camuflado é Sem fantasia, uma das obras-primas de Chico Buarque, composta para a peça Roda-viva, de sua autoria, com direção de Zé Celso. A peça falava da ascensão e queda de um cantor popular, manipulado e controlado pela indústria cultural, para atender aos gostos do mercado, numa analogia ao regime militar vigente. Lutando contra os efeitos negativos dessa manipulação de sua vida pessoal, o cantor, nessa música, troca confidências e procura redimir-se com a mulher amada. Em cada trecho, um fala ao outro e as duas estrofes, como suas almas gêmeas, seguem em total harmonia, até se encontrarem, ao final da canção.

Por fim, outra história pouco conhecida envolve a canção Companheiro*, composta no inicio dos anos 70, tema de abertura da atual novela das seis da Globo, Araguaia, escolhida entre centenas de candidatas. Mesmo não tendo sido feita para esse fim, sua mensagem de força, esperança e otimismo terminou por transformá-la em um dos “hinos” daqueles que lutaram na guerrilha do Araguaia, alguns deles desaparecidos até hoje. Recentemente, um dos sobreviventes escreveu uma bonita carta para o compositor Tibério Gaspar (Sá Marina, BR-3), confirmando o fato.

Junto a documentos, fotos, depoimentos, reportagens e tudo mais que viabiliza o registro histórico dos acontecimentos, a música é uma das formas mais acessíveis, eficientes e agradáveis de contá-los, a ponto de alguma sempre nos vir à mente, ao lembrarmos de fatos, pessoas, lugares, assuntos ou meras palavras. E é assim que vamos traçando nossa trilha sonora pelos caminhos da vida.



* Companheiro (Naire / Tibério Gaspar)

Vai amigo
Não há perigo que hoje possa assustar
Não se iluda
Que nada muda se você não mudar

Ponha alguma coisa na sacola
Não esqueça a viola
Mas esqueça o que puder
E cante que é bom viver

Rasgue as coisas velhas da lembrança
Seja um pouco de criança
Faça tudo o que quiser
E cante que é bom viver

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