19.4.11

Parabéns, meu rei


Artistas envelhecem (não deveriam). Sobretudo os nossos artistas. Aqueles que nos pareciam eternos, que embalaram nossos sonhos e aflições juvenis. Com quem tínhamos um encontro marcado, todo ano, quando éramos presenteados com os frutos de seus trabalhos, obras que transcenderam limitações de tempo e eternizaram-se. E eles envelhecem em público, despudoradamente, na nossa cara. Suas rugas, cabelos brancos e demais marcas do tempo são todas de domínio público, sem direitos autorais.

A geração de ouro da MPB surgida nos anos 60 está chegando aos 70. Nossa majestade Roberto Carlos é o primeiro da fila e chega a essa idade hoje. Depois dele, vêm Chico Buarque, Caetano Veloso, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Ney Matogrosso e muitos outros. Pensando bem (amanhã eu vou trabalhar), comparando-os com setentões de duas décadas atrás (Nelson Gonçalves, Carlos Galhardo, Orlando Silva) -, os novos velhos nem parecem ter envelhecido tanto assim. Afinal, a quebra de padrões surgida no final dos anos 50 - mudança de voz, figurino, aparência, estilo de interpretação e musical - fez com que o que veio antes parecesse bem mais antigo aos olhos de quem chegou ao mundo depois.

Não devemos discutir qualidade musical, se “nossas” músicas são melhores, até porque seríamos bastante suspeitos para defendê-las e também porque é legítimo cada geração preferir as suas. Não obstante, a despeito de, hoje em dia, as canções de Roberto e Erasmo Carlos serem vistas por muitos como bregas ou melosas, se pegarmos algum sucesso passado da dupla que faça uso de linguajar próprio da juventude e/ou fale sobre conflitos próprios dessa faixa etária, percebe-se que cairia perfeitamente na voz de alguma banda atual (afinal, o perfil do jovem é atemporal).

É o caso da ousada Quero que vá tudo pro inferno, sucesso estrondoso de 1965, As curvas da estrada de Santos (“... se acaso numa curva eu me lembro do meu mundo, eu piso mais fundo, corrijo num segundo, não posso parar”) e Sua estupidez, entre tantas outras. Todos estão surdos é outro exemplo de que falar a mesma língua é passo básico para uma boa comunicação. A canção, de mensagem religiosa, retomou o sucesso, duas décadas depois, ao ser regravada por Chico Science & Nação Zumbi.

Nos pós-rebeldes anos 70, já mais “comportado”, Roberto Carlos continuou falando aos jovens, entre uma e outra canção de amor, hoje consideradas “caretas”. Logo no início da década, numa canção que nem é das mais conhecidas, À janela* (1972), falou direto a essa turma, ao tratar do dilema entre sair de casa ou não, muito embora o bom-mocismo da nova fase do rei tenha feito com que, na música, ele optasse pelo não.

Mesmo aqueles que dizem não gostar de RC deparam-se, eventualmente, com seus cantores e grupos preferidos bebendo dessa fonte. Quando a banda Jota Quest regravou Além do horizonte, cerca de duas décadas depois da versão original – a qual causou surpresa pelo uso do termo “frescura” em sua letra (“... bronzear o corpo todo sem censura / gozar a liberdade de uma vida sem frescura”) -, muitos pensaram tratar-se de música nova do grupo.

Tem canções de nossa época que já escutamos tanto que nem imaginamos a possibilidade de alguém não conhecer. Um dia desses, porém, conversei com uma jovem que disse não conhecer nenhuma música do cantor e compositor Lobão. Respondi, com toda certeza e convicção, que ela conhecia, sim e cantarolei logo a mais conhecida dele (Me chama), crente que estava abafando. Qual o quê! A resposta foi a mais absoluta indiferença.

Aproveitando o susto - e tentando refazer-me dele -, logo abordei outros jovens, pedindo que me dissessem alguma música de RC que conhecessem. Foram citadas Calhambeque e 120... 150... 200 km por hora, fora as mais óbvias, mas não menos belas Como é grande o meu amor por você, Detalhes e Emoções. Resultado da enquete, sem margem de erro, para mais, para menos, nem para mais ou menos: artistas envelhecem, músicas não. E algumas são eternas.



* À janela (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)

Da janela o horizonte
A liberdade de uma estrada eu posso ver
O meu pensamento voa livre em sonhos
Pra longe de onde estou

Eu às vezes penso até onde essa estrada
Pode levar alguém
Tanta gente já se arrependeu e eu
Eu vou pensar, eu vou pensar

Quantas vezes eu pensei sair de casa
Mas eu desisti
Pois eu sei lá fora eu não teria
O que eu tenho agora aqui

Meu pai me dá conselhos
Minha mãe vive falando sem saber
Que eu tenho meus problemas
E que às vezes só eu posso resolver

Coisas da vida
Choque de opiniões
Coisas da vida
Coisas da vida

Novamente eu penso ir embora
Viver a vida que eu quiser
Caminhar no mundo enfrentando
Qualquer coisa que vier

Penso andar sem rumo
Pelas ruas, pela noite sem pensar
No que vou dizer em casa
Nem satisfações a dar

Penso duas vezes me convenço
Que aqui é o meu lugar
Lá fora às vezes chove
E é quase certo que eu vou querer voltar

A noite é sempre fria
Quando não se tem um teto com amor
E esse amor eu tenho mas me esqueço
Às vezes de lhe dar valor

Coisas da vida
Choque de opiniões
Coisas da vida
Coisas da vida

Tudo tem seu tempo
E uma vida inteira eu tenho pra viver
E nessa vida é necessário a gente
Procurar compreender

Coisas que aborrecem
Muitas vezes acontecem por amor
E esse amor eu tenho esquecido às vezes
De lhe dar valor

2.4.11

Música política brasileira

Algumas amostras de pitadas de tempero político no menu da música brasileira

Por conta da esporadicidade de eleições e da censura aos meios de comunicação no Brasil, após o golpe militar que completou, esta semana, 47 anos, os comícios – eventos, hoje em dia, sem graça e quase extintos, frutos de campanhas políticas mais insossas e menos empolgantes -, tinham, então, alguma graça. Havia uma divisão clara entre os que apoiavam ou não a dita desdita, entre esquerda e direita, o que contribuía para que, partindo da oposição, esses eventos se tornassem, ao mesmo tempo, uma espécie de grito de protesto e um programa de domingo. Era, também, uma época de muita força na música popular brasileira, o que proporcionou uma junção de política com música, cujas afinidades eram visíveis até nas siglas que as representavam, MDB e MPB.

As primeiras eleições diretas para governador durante e logo após o fim da ditadura e a campanha pelas diretas pra presidente renderam memoráveis comícios, com a presença de artistas de peso. Além das músicas de protesto, os programas eleitorais contavam com versões e jingles empolgantes. Em 1986, a campanha de Miguel Arraes para o governo de Pernambuco teve como música de fundo uma versão de Tô voltando, interpretada por Teca Calazans: “Olha nos olhos do povo e vai notando que um brilho novo está voltando...”. E um repente fazia referência ao fato de ele ter sido deposto, por ocasião do golpe militar: “Volta Arraes ao Palácio das Princesas, vai entrar pela porta que saiu”. Emocionante.

No entanto, nem só de jingles e suas mensagens diretas vivia a política de misturar música com política. Uma canção dos anos 70, A tonga da mironga do kabuletê (Vinícius e Toquinho), por exemplo, guarda, até hoje, um certo folclore em torno de sua letra: “... Vou lhe rogar uma praga, eu vou é mandar você pra tonga da mironga do kabuletê”. Correm duas versões a respeito do significado da expressão que a intitula.

Uma das versões diz que não significa nada, trata-se apenas de uma junção aleatória de palavras de origem africana e outra diz tratar-se de um palavrão, que não cabe, aqui, citar e que, na música, teria como alvo o governo militar. Toquinho já disse, em entrevista na qual ratificou a versão do palavrão, que a expressão fora escutada pela então esposa de Vinícius, Gessy, no Mercado Modelo, em Salvador. De um jeito ou de outro, creio que o que menos interessou à dupla foi averiguar a origem ou significado daquilo.

Outra mostra de que o cunho político que envolvia algumas canções era, por vezes, camuflado é Sem fantasia, uma das obras-primas de Chico Buarque, composta para a peça Roda-viva, de sua autoria, com direção de Zé Celso. A peça falava da ascensão e queda de um cantor popular, manipulado e controlado pela indústria cultural, para atender aos gostos do mercado, numa analogia ao regime militar vigente. Lutando contra os efeitos negativos dessa manipulação de sua vida pessoal, o cantor, nessa música, troca confidências e procura redimir-se com a mulher amada. Em cada trecho, um fala ao outro e as duas estrofes, como suas almas gêmeas, seguem em total harmonia, até se encontrarem, ao final da canção.

Por fim, outra história pouco conhecida envolve a canção Companheiro*, composta no inicio dos anos 70, tema de abertura da atual novela das seis da Globo, Araguaia, escolhida entre centenas de candidatas. Mesmo não tendo sido feita para esse fim, sua mensagem de força, esperança e otimismo terminou por transformá-la em um dos “hinos” daqueles que lutaram na guerrilha do Araguaia, alguns deles desaparecidos até hoje. Recentemente, um dos sobreviventes escreveu uma bonita carta para o compositor Tibério Gaspar (Sá Marina, BR-3), confirmando o fato.

Junto a documentos, fotos, depoimentos, reportagens e tudo mais que viabiliza o registro histórico dos acontecimentos, a música é uma das formas mais acessíveis, eficientes e agradáveis de contá-los, a ponto de alguma sempre nos vir à mente, ao lembrarmos de fatos, pessoas, lugares, assuntos ou meras palavras. E é assim que vamos traçando nossa trilha sonora pelos caminhos da vida.



* Companheiro (Naire / Tibério Gaspar)

Vai amigo
Não há perigo que hoje possa assustar
Não se iluda
Que nada muda se você não mudar

Ponha alguma coisa na sacola
Não esqueça a viola
Mas esqueça o que puder
E cante que é bom viver

Rasgue as coisas velhas da lembrança
Seja um pouco de criança
Faça tudo o que quiser
E cante que é bom viver