29.1.11

Os melhores discos dos últimos tempos da última década

Coroada com a histórica eleição de nossa primeira presidenta e com a escolha de Ana Hollanda, irmã de Chico Buarque, pra ministra da cultura, entre outras mulheres, a primeira década do século XXI parece ter sido essencialmente feminina, também, na música.Sem esforço, lembramos de várias cantoras que despontaram nesse período, como Ana Carolina, Teresa Cristina, Maria Rita, Mônica Salmaso, Vanessa da Mata, Luíza Possi, Céu, Ceumar, Mart'nália, Roberta Sá, Fernanda Takai (versão solo), Ana Cañas, Maria Gadú (mais: Pitty, Cláudia Leitte, Mallu Magalhães). Não abrindo nem fechando parênteses, gosto de quase todas. Já os nomes masculinos na mídia foram poucos (Vander Lee, a turma da Trama) e mais restritos a grupos de rock: Detonautas, NX Zero, CPM 22.

Seguindo a linha de sucesso editorial do momento, dos n livros, discos ou filmes que você deve ler, ouvir ou assistir antes de morrer (título engraçado, parece até que as obras são tão ruins, que você morrerá ao escutá-las), proponho, então, a lista dos dez discos da última década que você deve escutar antes de morrer, ou ainda, inspirado nos Titãs, a lista dos melhores discos dos últimos tempos da última década.

Considerando apenas discos de inéditas, em minha lista, talvez conservadora, certamente incompleta e sem pretensões de ser definitiva, onde, curiosamente, faltam os tais nomes da última década (não por falta de novos talentos - evoé jovens à vista -, mas pela qualidade dos anteriores), certamente entrariam, necessariamente nessa desordem: Pelo sabor do gesto (Zélia Duncan), Porque não tínhamos bicicleta (Flávio Venturini), Tudo novo de novo (Paulinho Moska), Qualquer (Arnaldo Antunes), Qual o assunto que mais lhe interessa (Elba Ramalho), Pietá (Milton Nascimento), (Caetano Veloso), Carioca (Chico Buarque), Ventura (Los Hermanos) e Infinito particular (Marisa Monte).

No melhor estilo Chico, Carioca traz versos como: “Dura a vida alguns instantes, porém mais do que o bastante, quando cada instante é sempre, Ela faz cinema, ela é assim, nunca será de ninguém, porém eu não sei viver sem e FIM” e “O sol ensolarará a estrada dela”, onde a conjugação verbal entoa um larará gostoso. Chico, que já fizera música pra Deus e o mundo, fez, dessa vez, pra um filho de Deus, em suas palavras. Interessante que, para compor Ode aos ratos, ele consultou o amigo Paulo Vanzolini, sobre a veracidade de os ratos terem o nariz frio (Vanzolini, compositor de Ronda e Volta por cima, além de músico, é zoólogo, formado em medicina) e recebeu como resposta, em referência a suas canções: “Você mente tanto pra mulher, minta pra rato, também”.

Pelo sabor do gesto, de Zélia Duncan, é um esmerado trabalho, do projeto gráfico às composições, que reúne parcerias da cantora com alguns de seus contemporâneos, como Chico César, Moska, Zeca Baleiro, John Ulhoa (Pato Fu) e com novos compositores, como Marcelo Jeneci, co-autor de Todos os verbos que, no show, vem acompanhada de história tão bonita quanto a música. A faixa-título, versão de canção do musical francês Les chansons d'amour, fala do amor expresso em sua forma mais pura, que carece de palavras e revela-se, delicadamente, em gestos: “Mas se eu ousar amar pelo sabor do gesto / Te empresto da maçã, vai junto o coração / Esquece o que eu não fiz / Te sirvo o bom da festa / De um jeito mais feliz”. E ainda tem regravação de Ambição, de Rita Lee.

Porque não tínhamos bicicleta, de Flávio Venturini, não precisaria mais do que uma faixa para estar na lista: Céu de Santo Amaro *, que tem como melodia uma composição de Johann Sebastian Bach. A música já havia recebido letra (If you could remember), em canção gravada pelo cantor Jessé que, nos anos 70, seguindo tendência da época, ainda cantava em inglês, usando o nome artístico Tony Stevens. O interessante, ao compararmos as duas versões, If you could remember e Céu de Santo Amaro, é que, por não ser uma delas versão da outra – caso em que se costuma manter a mesma disposição das sílabas dentro do compasso da melodia -, mas sim duas letras construídas em cima de uma mesma música instrumental, não é tão clara essa percepção de tratar-se da mesma melodia.

Venturini, que talvez nem saiba dessa outra versão, escreveu a sua na cidade de Santo Amaro da Purificação (BA), após escutar, em festa local, a interpretação de um violonista espanhol para a música de Bach, “numa bela noite de lua de janeiro”, como afirma em seu site oficial. Para completar o encanto de tão sublimes letra, música e arranjo, Venturini convidou Caetano Veloso, filho da terra e dono de uma das mais belas vozes brasileiras, para dividir com ele os vocais, na gravação para o disco. Estava pronta uma das melhores canções da década, que Maria Bethânia, em seu show Tempo, Tempo, Tempo, Tempo (2005), casou perfeitamente com Soneto de Fidelidade (Vinícius de Moraes), sem nenhuma pena de nós. ** E vocês, que discos ou músicas escolheriam?


* Céu de Santo Amaro (J. S. Bach / Adaptação - letra e arranjo: Flávio Venturini)

Olho para o céu
Tantas estrelas dizendo da imensidão
Do universo em nós

A força desse amor
Nos invadiu
Com ela veio a paz
Toda beleza de sentir
Que para sempre uma estrela vai dizer
Simplesmente amo você

Meu amor vou lhe dizer
Quero você com a alegria de um pássaro
Em busca de outro verão

Na noite do sertão
Meu coração
Só quer bater por ti
E eu me coloco em tuas mãos
Para sentir todo carinho que sonhei
Nós somos rainha e rei

A força desse amor nos invadiu
Então, veio a certeza de amar você

**

14.1.11

Fico com o disco do Pixinguinha, sim!

Ao pensar sobre a música da década passada, a primeira lembrança que me vem à mente é a mudança pela qual passou o modo como a consumimos, partindo da mídia física para o arquivo digital. Se música é alimento, antes o prato já vinha pronto. A receita era juntar dez ou doze itens, embalar e colocar à venda. Agora, os ingredientes musicais precisam ser selecionados por nós, consumidores e, diante disso, a geração que já era mais madura no início dos anos 00, acostumada a ter comida na boquinha durante sua formação musical, vive, hoje, meio à deriva, nesses mares nunca dantes navegados, tendo que correr atrás.

A época em que mais se consome e absorve informações, ou pelo menos quando se está mais aberto a absorvê-las, é durante a juventude e uma mudança no modelo de reprodução musical ocorrida ainda nessa fase da vida é sempre melhor assimilada do que na maturidade. E ainda que essa geração a que me refiro - e à qual pertenço - também já tenha vivenciado alguma mudança, ela ocorreu apenas na embalagem do produto (de LP para CD), não na forma de entrega.

Analisando de forma simplista as duas transformações, primeiro o disco diminuiu de tamanho e perdeu o lado B, depois se desintegrou em objetos virtuais não identificados, soltos no ar, como discos voadores, sem arte-final, capa ou encarte e mesmo sem ficha técnica, muitas vezes. Trocando em miúdos, a revolução atual foi mais crítica (mas fico com o disco do Pixinguinha).

A era de ouro do CD foi a década de 90 (assim como o boom da internet, década importante essa). Lembro minha primeira refeição nesse formato, que recebi como presente de amigo-secreto, no natal de 1993: O canto da cidade, Daniela Mercury (era auge, também, da axé music). Até então, o que mais se aproximava do hábito de copiar ou baixar músicas era ficar com um gravador a postos e esperar a canção desejada tocar em nossa rádio preferida, para então apertar a tecla REC do aparelho. Missão árdua a exigir alerta máximo, é fácil imaginar por que hoje eu escolheria, como fundo musical ideal para a ocasião, Ana Carolina: “a canção tocou na hora errada...”. Sem falar que, muitas vezes, o locutor falava antes de a canção terminar, colocando todo o trabalho a perder.

Se a facilidade de reprodução de CD’s fez crescer a pirataria, o surgimento do MP3, a popularização da internet e seus downloads acabaram de decretar o declínio dessa mídia (agora, cantores ganham dinheiro mesmo é com shows, o que talvez explique o fato de artistas estrangeiros, cada vez mais, virem aportando em nosso país, em cidades fora do eixo Rio-São Paulo). Como resultado, vimos lojas de discos tradicionais calarem a voz, como a Vivace (Recife) e, no último dia do ano passado, a Modern Sound (Rio de Janeiro). Hoje, os locais que ainda resistem são, em sua maioria, aqueles não exclusivamente voltados ao comércio de CD's - grandes livrarias, lojas de departamento e supermercados - ou de público específico.

Assim como os discos, o mundo gira e sobretudo quem tem parentes adolescentes percebe que, ao menos para esse público, o fim do CD já é realidade, está na agulha. Quanto aos mais velhos, estes devem continuar consumindo discos que, com o passar do tempo, devem virar objeto de colecionadores, saudosistas e aficionados, como acontece com os LP's, hoje em dia, que continuam sendo lançados e têm público cativo. É o ciclo da vida. Se antes precisávamos de um cômodo da casa para dispor todos os nossos livros e discos, hoje eles cabem na palma da nossa mão. Trocamos o cômodo pela comodidade: a tecnologia atual coloca a antiga no bolso (mas ainda fico com o disco do Pixinguinha).

Com a pulverização da música proporcionada pela internet, o acesso a novas canções tornou-se, ao mesmo tempo, fácil e difícil. Fácil porque, em vez de depender apenas de programações de rádio e tv como aperitivo para escutá-las, conhecê-las, saboreá-las, antes de partir para o prato principal, à la carte - o CD -, passou-se a contar com o grande, democrático e sortido self-service da internet, com infinitas opções para abrir o apetite, que dispensam sugestões do chef e jabás. Difícil pelo mesmo motivo: sem o outrora prato principal, não se faz uma refeição completa, belisca-se uma coisinha aqui e outra ali, apenas.

Embora ainda desafeito a esse novo modus vivendi, reconheço que, independentemente do formato (e do disco do Pixinguinha), a essência disso tudo - a música - permanecerá e, para apreciá-la, sempre precisaremos apenas dos ouvidos. Mas mudando o disco, eu ia falar da música da década passada. Fica pra próxima (vez, não década).