4.6.10

Bicampeões morais

O cronista esportivo Armando Nogueira disse, certa vez, sobre a copa de 70: “Choremos a alegria de uma campanha admirável em que o Brasil fez futebol de fantasia, fazendo amigos. Fazendo irmãos em todos os continentes.”. Suas palavras caberiam bem, também, em relação a outra copa que, para mim e creio que para quem mais não acompanhou nosso terceiro título, foi a melhor de todas: Espanha, 1982. Nas duas edições anteriores, após a conquista do tri, chegamos às semifinais, mas não vencemos, muito menos convencemos. Quem tinha menos de vinte anos à época, nunca tinha visto o Brasil ser campeão e a expectativa só aumentava...

Pela primeira vez, desde 1970, via-se o Brasil jogar um futebol de encher os olhos, em que os gols eram incríveis obras coletivas, que faziam jus ao termo futebol-arte, repetido à exaustão. Claro que havia problemas, divergências (Jô Soares tinha um personagem em seu programa humorístico que clamava, no orelhão, ao técnico Telê Santana: “Bota ponta, Telê!”, pelo fato de a seleção não contar com um ponta-direita) e momentos de mau futebol, como creio que havia, também, no time de 70. Como em toda competição, porém, as imagens que ficaram foram apenas as mais bonitas e marcantes, o que pode dar a impressão, aos que não assistiram aos jogos, de que era assim o tempo todo, o que não é verdade. Era assim quase o tempo todo.

Depois do título moral de 78, quando terminamos a competição invictos, sob o comando do capitão Coutinho, o futebol solto e alegre do time de 82 bateu bem com os ares de liberdade que se aproximavam. A copa da Espanha foi marcante em vários aspectos e logo se formou um clima positivo entre os torcedores, com direito até a músicas de sucesso, o que não ocorria desde o título de 70, com os “noventa milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção” (em 74 e 78, o “salve a seleção” teve outra conotação). Uma dessas canções, o samba Povo feliz (Voa canarinho) foi gravada por Júnior, um dos craques do time de 82, às vésperas da competição.

Mas foi outra canção que descreveu bem o sentimento da época, de um otimismo comedido, mas crescente. A esperança por um fio, materializada na figura do técnico Telê Santana. A canção citava o apelido carinhoso recebido por ele, quando ainda jogava, como ponta: Telê, um fio de esperança / De velho, moço e criança / Unindo os corações / E assim de novo do mundo seremos / Seremos os campeões*. A melodia lembrava uma marchinha ou um frevo, com toques de música espanhola. No ano seguinte, após mais esse fracasso do escrete verde e amarelo, outra canção retratou a frustração de todos os amantes de futebol da nação: “A gente joga bola e não consegue ganhar. Inútil! A gente somos inútil!” (Inútil, de Roger Moreira - Ultraje a Rigor).

Os meios de comunicação também contribuíram com sua arte, como a vinheta de abertura das transmissões dos jogos na rede Globo de televisão, uma espécie de previsão do Google Earth, em que uma vista aérea da Terra ia se aproximando do continente europeu, da Espanha, de Madrid, de um estádio de futebol, até chegar, no centro do gramado, a uma bola. Bem bolado (não resisti, como diria um amigo). Ao fundo, uma música que misturava as melodias de Pra frente Brasil e Touradas em Madri.

O primeiro embate do Brasil nessa copa, contra a União Soviética, foi um exemplo de que havia momentos sem graça, que, nesse jogo, duraram quase todo o primeiro tempo, que terminou com a vitória dos soviéticos por 1 x 0. O goleiro deles, Dasaev, era excelente, o melhor da copa e pegava tudo. Durante o intervalo, de tão calejados por experiências passadas recentes, ficamos com a impressão de que, mais uma vez, não chegaríamos lá. Tanto que nem levamos em conta o fato de que era uma estreia, a tensão era grande e o entrosamento pequeno. No final das contas, ganhamos por 2 x 1, com um pênalti não marcado a favor dos soviéticos, mas um futebol bem mais bonito, a partir do segundo tempo, algo que se repetiria daí pra frente.

Nessa edição, pela primeira vez, a competição contou com 24 seleções, divididas em seis grupos, dos quais se classificavam duas. Na primeira fase, além da URSS, a seleção brasileira enfrentou a Escócia (4 x 1) e a Nova Zelândia (4 x 0). Na segunda fase, as doze seleções restantes foram divididas em grupos de três. Um desses grupos poderia ter determinado os três primeiros colocados do campeonato, se a regra não determinasse a passagem apenas do líder, tampouco o destino os tivesse aproximado antes da hora. Foi nele que caímos e foi nele que caímos: Brasil, Argentina e Itália. A euforia foi grande e a confiança total, porém, após a vitória no primeiro confronto, contra a Argentina, por 3 x 1. Afinal de contas (não tem cabimento entregar o jogo no primeiro tempo), a squadra azzurra, adversária seguinte, tinha se classificado com três empates horrorosos.

Não assisti à copa de 50, mas creio que a certeza de uma vitória contra a Itália (ou do empate, resultado que já nos classificava), em 82, era quase tão grande quanto a da conquista do primeiro título, naquela copa. Da mesma forma, a frustração da derrota no Sarriá, em Barcelona, foi quase tão grande quanto a do episódio conhecido como Maracanaço, na edição realizada no Brasil. Como a convulsão de Ronaldo em 1998 e a meia de Roberto Carlos em 2006, Toninho Cerezo, injustamente, levou a culpa por não levarmos a copa, graças a um passe lateral, do meio do campo, que caiu nos pés de Paolo Rossi, atacante italiano (dos seis gols dele, que foi artilheiro da copa, metade foi marcada contra o Brasil e a outra metade após esse jogo, na semifinal e final).

Na verdade, o problema foi o mesmo de Hungria e Holanda, também citados como injustiçados, em copas anteriores: jogar bonito, sem pensar apenas em resultados. Perdemos por 3 x 2 e, mais do que o É tetra! É tetra!”, de Galvão Bueno, em 94, ecoa nos meus ouvidos, até hoje, o melancólico “Acabou o jogo! Acabou o jogo!”, de Luciano do Vale, à época locutor da rede Globo (Depois da copa, ele foi afastado da emissora e surgiram comentários de que o motivo teria sido o fato de mostrar-se muito emotivo nas transmissões, o que era, justamente, sua melhor virtude. Nem sabíamos o que viria pela frente...). Fomos bicampeões morais.

Foi nessa época, também, que os jogadores brasileiros passaram a ser mais cobiçados pelos times europeus, dando início ao fenômeno que ocorre até os dias de hoje. Depois da copa, vários titulares da nossa seleção – que sei de cor até hoje: Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior, Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, Serginho e Éder - foram embora, a maioria para a Itália (Falcão era o único “estrangeiro” do grupo e, antes da convocação para a copa, já atuava nesse país, onde recebeu o apelido de rei de Roma). Se, nos anos seguintes, o campeonato espanhol e, mais adiante, o inglês teriam maior destaque na mídia, o italiano era a bola da vez nos anos 80.

Bola pra frente. Hoje, somos pentacampeões e vem aí a copa da África, continente de um povo sofrido, mas alegre e que merece um pouco de diversão, um ópio saudável, do bem. Como diz o escritor Eduardo Galeano, somos todos africanos emigrados e a primeira copa nesse continente, no país de Nelson Mandela, tem, por isso, um sabor todo especial, como voltar pra casa. E como já fomos campeões em todos os continentes que já sediaram a competição (América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia), nada melhor do que também levar o título em casa. E repetir a dose, em 2014, novamente em casa.



* Sangue, swing e cintura (Moraes Moreira)

O rei aqui é Pelé
Na terra do futebol
Olé, é bola no pé
Redonda assim como o sol
Seja no Maracanã
Ou no gramado espanhol

Escola aqui é de samba
E bola é arte do povo
Sua alegria Deus manda
Nasce um Garrincha de novo
Quem sabe tem mais de um
Quebrando a casca do ovo

Tá lá, ta lá, tá lá
Tá no filó
Tá na filosofia
Quem sabe, sabe
O craque brasileiro
Tem sabedoria

Sangue, swing e cintura
Mistura de pé
Futebol e arte
Que em nenhuma outra parte
Do mundo há

Galinho de Quintino
Flamengo menino
Feito em forma de hino
Gol

Calcanhar de Sócrates
Gogó de cantor
Só craque, só craque, só craque, só craque
Só craque doutor

Telê, um fio de esperança
De velho, moço e criança
Unindo os corações

E assim de novo do mundo seremos
Seremos os campeões