20.5.10

O perfeito e o imperfeito do subjetivo

Palavras foram criadas para facilitar a comunicação. A linguagem, portanto, pressupõe esse fim. De nada adianta ignorar ou execrar o linguajar popular, restringir-se à norma culta e não se fazer entender pela maioria das pessoas, como um brasileiro exilado em sua própria pátria. Afinal, que língua é essa que pouquíssimos brasileiros falam? Podemos chamá-la de língua oficial? A discussões desse tipo é que se propõe a exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo (com curadoria de Ataliba Castilho e Eduardo Calbucci), em cartaz no Museu da Língua Portuguesa (SP, até 27 de junho próximo), que nos apresenta interessantes frases, como: “Se alguém usou uma palavra, ela existe.” ou “Todos têm sotaque. Ainda bem.”.

Tais discussões casam bem com o pensamento de Marcos Bagno, profissional graduado em Letras pela UFPE, doutor em Línguística pela USP, professor da UnB e autor de mais de 30 livros, entre eles Preconceito linguístico. Impossível ficar indiferente a suas convicções. De posições firmes, o escritor, tradutor e linguista mineiro costuma afirmar, por exemplo, que o professor Pasquale e suas concepções rígidas de 'certo' e 'errado' estão na contramão da história e não são aceitas nos maiores centros de pesquisa linguística brasileiros.

Bagno defende a ideia de que o preconceito linguístico esconde um imenso preconceito social (a forma caricata e inventada com que a rede Globo mostra o sotaque nordestino em suas produções é um claro exemplo disso) e constitui “um disfarce amplamente aceito para que uma pessoa seja discriminada e excluída dos bens sociais aos quais teria direito pelo simples fato de ser um cidadão”.

Em recente e interessante entrevista ao Jornal do Commercio (PE), o linguista sugeriu: “as aulas de língua materna têm que se destinar, antes de mais nada, à inserção dos aprendizes na cultura letrada, e isso se faz por meio da leitura, da escrita, da leitura, da escrita e principalmente da leitura e da escrita”. E concluiu: “Enquanto nossos professores acharem que é preciso ensinar dígrafo, oxítonas, preposições, oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo, epiceno e outras coisas cabalísticas desse tipo, nossa educação linguística continuará catastrófica como já está”.

Quanto a conclusões simplistas e precipitadas de que estaria fazendo apologia ao vale-tudo na língua portuguesa, afirma, com propriedade: “Nenhum linguista sensato jamais disse que não é preciso ensinar aos alunos as formas privilegiadas, normatizadas de uso da língua. O que dizemos é que essas não são as únicas formas válidas de uso da língua e que é preciso abordar em sala de aula a multiplicidade de usos idiomáticos que existe na sociedade. No entanto, como nossa sociedade só consegue pensar em termos de sim/não, preto/branco, certo/errado, um discurso que contemple a variação, a noção de pluralidade de falas, não consegue penetrar no senso comum”.

O escritor reconhece o viés político por trás de muitas de suas afirmações, o que considera inevitável. Entre os polêmicos, mas/e interessantes comentários encontrados em seus livros, cito dois, a título de ilustração. No primeiro, ele compara a morfologia verbal das línguas inglesa e portuguesa, ao observar que se I lived, you lived, he lived, we lived, they lived é recebido sem estranhamento, o mesmo não ocorre com eu morava, tu morava, ele morava, nós morava, eles morava, recebidos com “o riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compaixão pelos 'infelizes caipiras' que 'não sabem falar direito', como se fossem menos inteligentes ou até menos humanos que os demais falantes”.

O segundo comentário trata da troca do L pelo R na pronúncia de certas palavras, ao que ele se refere como “um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão”. Segundo ele, “as pessoas que dizem Cráudia, grobo, chicrete, pranta estão apenas dando livre curso à mesma tendência fonética que fez, por exemplo, com que o latim fluxu desse em português frouxo, com um R bem nítido, que plaga desse praga, que sclavu desse escravo, que blandu desse brando, que flaccu desse fraco, que gluten desse grude, que o germânico blank desse em português branco (...)”.

Para enriquecer a discussão, entrei em contato com o professor, que, gentilmente, comentou os seguintes pontos. Sobre a questão (que já foi bem pior) da valorização quase exclusiva da ortografia e das normas gramaticais, em detrimento da clareza na comunicação, ele afirmou: “O apego à tradição gramatical e à ortografia é muito antigo em toda a civilização ocidental, data de pelo menos três séculos antes de Cristo, quando foi criada a disciplina gramatical. Ao se fixar um modelo único de 'língua certa', inspirado nos usos de uns poucos escritores consagrados do passado, todos os demais usos da língua foram jogados na lata do lixo do 'erro'. As pesquisas linguísticas contemporâneas mostram o absurdo que é essa atitude, que carece de qualquer fundamentação científica, sendo integralmente ideológica”.

Com relação ao novo acordo ortográfico, disse ser a favor “porque, antes de tudo, retira de Portugal uma arma ideológica que sempre esteve nas mãos dos setores chauvinistas da sociedade portuguesa: a ideia de que a língua é 'deles' e que por isso toda decisão sobre os destinos do idioma cabem prioritariamente a Lisboa”. E completa: “Ora, 90% dos falantes de português vivem no Brasil. Se todos os demais países de língua portuguesa abandonassem a língua e a trocassem por outra, ainda assim o português brasileiro seria a terceira língua mais falada no Ocidente (…). Com o Acordo, todos os usuários da língua vão ter uma maneira única de escrever e isso decerto facilitará muito a divulgação do idioma e a circulação dos bens impressos. É preciso lembrar, sempre, que não se trata de uma 'uniformização da língua', como muitas pessoas equivocadamente têm dito. (...) o que vai mudar exclusivamente é a maneira de escrever a língua”.

O que concluo disso tudo é que se por um lado tenho o “vício” de seguir os rigores das regras gramaticais e até me incomodo ao perceber certos erros de grafia, por outro (ou pelo mesmo) comporto-me como um dinossauro jurássico sempre que sigo, por exemplo, o costume enraizado de respeitar regras de próclise e ênclise, como a de não iniciar frases com pronomes oblíquos* (quanto à mesóclise, ser-me-ia demais respeitá-la).

Não sou nenhum especialista no assunto, mas, em suma, mesmo sem concordar “em gênero e número igual”, reconheço, “com os nervos da cor da pele”, a singularidade do raciocínio do exímio linguista, cujas ideias, ainda que em primeira análise pareçam radicais e exageradas, suscitam reflexões, como a percepção de que a língua não é criada no papel, por acadêmicos, mas resulta, isso sim, da linguagem falada.



* Pronominais  (Oswald de Andrade)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

6.5.10

Transações políticas e transições sexuais (e vice-versa)


Já se discutiu, ao longo do tempo, a relação entre política e sexo, entre companheiro de luta e companheiro de leito. Meu partido é um coração partido, já dizia Cazuza, nos relativamente despolitizados anos 80. Desde a transformadora década de 60, porém, política e sexo já andavam um tanto descompassados em nosso país. As práticas livres adquiridas com a revolução sexual, fruto das conquistas do movimento hippie, foram refreadas, do lado de baixo do Equador, pelas ditaduras instaladas por essas bandas. Na década de 80, por sua vez, a liberdade política conquistada com o fim das ditaduras, veio acompanhada da repressão sexual provocada pela descoberta do vírus da AIDS. Como resultado, no ramo da música, fatos curiosos ocorreram.

Sexo, política e rock’n roll. Nos anos 60, as canções de protesto combatiam o momento político e refletiam bem o clima de repúdio à situação vigente e a esperança num futuro melhor. Já as ingênuas canções da Jovem Guarda, e mesmo as da Bossa Nova, não refletiam tanto a revolução sexual em curso. Se bem que, pouco depois, os Secos & Molhados viriam a distorcer, sem discursos panfletários, apenas com seus requebros, a rígida coluna vertebral da dita ditadura, característica que, junto com o forte apelo visual e músicas como O vira, tornou o grupo bastante admirado, também, pelas crianças.

Por sua vez, a cena musical dos anos 80, que já não via mais como novidade as canções de duplo sentido ou de apelo sexual, presentes desde a década anterior com Genival Lacerda e Gretchen, entre outros, recebia reforços nesse estilo. Músicas como Serão extra (Eu fui dar mamãe / Fui dar mamãe / Fui dar um serão extra / Trabalhei com o patrão), do grupo Dr. Silvana & Cia., Amante profissional (Pra qualquer tipo de transação / Sem compromisso emocional / Só financeiro), do Herva Doce e Dentro do coração (Põe devagar), do Rádio Táxi, brincavam com o sexo de maneira despretensiosa, em contrapeso à dura realidade que despontava, evidenciada por Cazuza em Ideologia: Meu prazer agora é risco de vida.

No campo político, a década coincidiu com o período de abertura e o fim da censura aos meios de comunicação, esse último tendo gerado calorosas discussões entre o que podia e o que não podia ou quais seriam os limites do bom senso. Alheios a essa discussão e como crianças que ganham um brinquedo novo, os compositores daquela geração, mesmo sem o apuro e a sutileza de um Chico Buarque, queriam mais era experimentar ao máximo a novidade que surgia. Ao mesmo tempo, como todo principiante - pássaro novo longe do ninho -, não sabiam como lidar com a incipiente liberdade. Foi assim, então, que o público pôde presenciar, pelas primeiras vezes, o uso aberto do palavrão, em canções como Faroeste caboclo (Renato Russo).

O tema censura foi, inclusive, ironizado pelo irreverente Léo Jaime, em Solange, do disco Sessão da tarde (1985), versão para a música de Sting, So lonely: “Eu tinha tanto pra dizer / metade eu tive que esquecer / E quando eu tento escrever / Seu nome vem me interromper / ... / Solange, Solange, Solange / É o fim, Solange”. Solange Hernandes foi diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal, setor extinto em 1988.

Renato Russo, que faria 50 anos em 2010, embora só tenha chegado ao sucesso após a leva de bandas surgidas na primeira metade da década de 80, que teve o Rock in Rio como marco divisório, foi um dos ícones da juventude da época e compôs duas canções que, junto com Brasil, de Cazuza, viraram hinos políticos daquela geração: Que país é este?Geração Coca-Cola*. E já que falamos de sexo e política, vale lembrar que outra canção dele, Eduardo e Mônica, recebeu uma análise (Mônica e Eduardo) um tanto política e sexualmente incorreta, na qual o autor inverte o senso comum de que Mônica é inteligente e engajada, enquanto Eduardo é alienado. Não obstante as ditas incorreções, o texto merece uma leitura mais leve, por ser passional – o que o torna mais engraçado - e criativo.

Faroeste caboclo, que se assemelha a uma espécie de ópera-rock, seja pela duração de cerca de nove minutos, seja por contar uma história – de desfecho trágico, por sinal - ou ainda pelas alternâncias melódicas que acompanham o sentimento do que vai sendo narrado, não deixa de lado o toque político, ainda que solto, no último verso: “E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília com o diabo ter / Ele queria era falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” (a extensa música, contrariando as lógicas de mercado, tocava bastante em rádio e era quase uma obrigação, para os jovens de então, saberem sua letra de cor e não salteado). A saga de João de Santo Cristo, narrada na canção, vai virar filme, em breve.

Mas foi a forma peculiar de narrar, por meio da música, conflitos existenciais próprios da juventude – os quais, numa geração dita perdida, pareciam ainda mais comuns -, que tornou tão idolatrado o cara que ousou cantar “e eu gosto de meninos e meninas”. Conflitos traduzidos em versos como “ainda estou confuso, só que agora é diferente”, “mudaram as estações e nada mudou”, “não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas”. E olhe que sexo verbal nem fazia seu estilo.



* Geração Coca-Cola (Renato Russo / Fê Lemos)

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola