1.12.10

Nossa imagem na tela grande

"Minha relação com a morte continua a mesma: sou radicalmente contra" (Woody Allen)


Neurose, designação genérica para os males da psique humana, é uma espécie de virose da cabeça, contra a qual o organismo deve reagir com pensamentos e ideias alternativas, os anticorpos da alma. Dando uma de psicólogo (e várias de neurótico), creio que um dos métodos eficazes de cura desses males é ver-se no espelho; é, paradoxalmente, saltar fora de si para, enfim, poder enxergar-se por dentro, em seus recantos mais íntimos; é fazer-se desindivíduo, para poder entender, aceitar, questionar suas individualidades. Nesses atos, ninguém representa papel mais importante que a arte, seja ela a quinta, a sexta ou a sétima.

E é da sétima que vem um dos melhores criadores de arte como imitação da vida. O cineasta nova-iorquino Woody Allen que, em cerca de quatro décadas, dirigiu dezenas de filmes e atuou em vários deles. Uma produtividade compulsiva, quase neurótica, de periodicidade praticamente anual (vem aí, em 2011, Midnight in Paris).

O mais importante em seus filmes são os diálogos, o uso da palavra. A imagem, o enredo, a história, o roteiro do filme assumem papel coadjuvante (a palavra como texto e todo o resto como pretexto). Assim, ele se permite encenar, de forma inteligente e criativa, as situações mais esdrúxulas e improváveis, tudo em prol da palavra, ator principal. Talvez por isso, ele consiga transitar tão bem entre filmes policiais, romances e comédias de costumes, ou ainda, misturar esses temas e assuntos tão diversos com maestria. Em Melinda e Melinda (2004), ele até brinca com isso, transportando essa sua habilidade para os personagens do filme, quatro amigos que discutem um desenrolar dramático e outro cômico para um enredo inicial proposto por um deles.

Como também brinca em O escorpião de Jade (2001), muito bom, em que o personagem principal é hipnotizado ao escutar certa palavra (Madagascar) e volta ao estado normal ao escutar outra (Constantinopla). Artifício curioso e simbologia perfeita, em se tratando de um cineasta que nos prende e hipnotiza simplesmente com a palavra, aquilo que tanto preza.

Seu dom de transformar simples situações e diálogos em cenas antológicas, as quais sempre nos levam a reflexões com leveza e inteligência, explica, também, como ele consegue se manter em destaque e agradar por tantos anos ininterruptos. Em Match point (2005), a partir de uma cena inicial digna de gênio - e que retorna, redonda, noutra parte do filme -, Woody Allen faz analogia entre o destino e uma bola de tênis que, ao tocar na rede, pode cair pra um ou outro lado, mudando o rumo do jogo. Já no recente e interessante Tudo pode dar certo (2009), ele conta a história de um senhor pedante e convencido, com complexo de superioridade e, por conseguinte, sem nenhuma paciência para a “mediocridade” de seus (des)semelhantes.

Tudo é permitido em sua imaginação sem limites, que cria situações interessantes, como em A rosa púrpura do Cairo (1985), o primeiro a que assisti, em que o personagem de um filme romântico sai da tela do cinema pra viver uma história de amor com uma moça solitária, que assistia inúmeras vezes a esse filme. Ou em Édipo arrasado, um dos Contos de Nova York (1989), em que a figura materna assume magistral representação, assumindo as proporções que possui aos olhos do filho, que passa a vê-la, onipresente, nos céus da cidade, a expor toda sua vida íntima.

Seus personagens expõem, de várias e criativas formas, nossos defeitos, neuroses, excentricidades e idiossincrasias. E quando quem representa o papel é ele próprio, o resultado torna-se ainda mais eficaz, dada a sua perfeita caracterização do ser neurótico. Como em Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) – seu filme mais premiado - e Zelig (1983). Não sei se de médico, talvez de louco, mas certamente de Zelig todo mundo tem um pouco. Também como ator, em Scoop – o grande furo (2007), está divertidíssimo no papel de um mágico que, em uma de suas divertidas autoanálises, atribui à extrema ansiedade o fato de não engordar.

Por esses dias, o cineasta vem sendo lembrado por dois motivos. O primeiro é seu mais novo filme, Você vai conhecer o homem de seus sonhos, que nos faz refletir sobre a ideia de que a ilusão é melhor do que qualquer remédio e cuja ironia começa do título, que tanto pode representar um ser vivo do sexo masculino, como a figura da morte, o que fica mais claro no título original em inglês (You will meet a tall dark stranger). O segundo motivo é seu aniversário de 75 anos, a ser comemorado hoje, 1º de dezembro. Acontecimentos que eu, neurótico e simpático a efemérides, não poderia deixar de reverenciar. Woody Allen explica.

27.11.10

Castelo de cartas

* Aos jovens de bem que também vivem nos morros, favelas e complexos - à margem, não marginais -, igualmente vítimas da complexa violência nas cidades, inclusive policial.


Estão desenhando meu próprio destino
Com tinta bem forte pra não apagar
Com o sangue daqueles que vejo morrendo
Na porta de casa e não posso evitar

Liberdade que tenho de nada me serve
Na favela é assim, meu futuro é incerto
Não tenho comida, não tenho presente
Ninguém quer saber como tenho passado

Menino de rua, sigo minha sina
Lutar por trabalho, escola, comida
Luta desigual, onde vence o mais forte
É este o presente que ganho da vida

Meu irmão lá de baixo, este teve mais sorte
Morando na praia, vivendo de brisa
Se aprendo com a vida lidando com a morte
No final, nada muda: eu morro, ele, casa

Mas é meu irmão, não se pode negar
Afastado de mim pela sociedade
Não quero disputa, quero o meu lugar
E lutar pra que seja um lugar de verdade

Verdade que eu quero deixar pro meu filho
Que é a minha coroa, meu trono, castelo
Um castelo de cartas onde eu sou o rei
E onde um dia ele seja um príncipe com sorte


(Castelo de cartas - Paulo Bap, 2000)

11.11.10

Sentido cidade-subúrbio

“O amor é feito capim, mas veja que absurdo, a gente planta, ele cresce, aí vem uma vaca e acaba tudo” (Rodrigo Mell / Elvis Pires)

Impelido a expelir todo ar de superioridade que porventura pudesse correr debaixo do meu nariz, sempre busquei dar ouvidos ao que “vem debaixo e me atinge”, àquilo que não sei, mas quero saber e não tenho raiva de quem sabe. Um estilo musical que, embalado com diferentes rótulos, do cafona ao brega, queira ou não, tem embalado nossos ouvidos ao longo do tempo e não pode ser ignorado. Mesmo assim, e supondo conhecer uma boa quantidade de músicas brasileiras, percebo, impressionado, o mundo à parte das canções que, geralmente restritas à periferia das cidades, rompem a barreira do som, levadas pelas carrocinhas de cd’s, que as transportam a outros habitat’s (como a citada acima, que escutei outro dia, na praia).

Sob outro aspecto, que não o social, por vezes, chama-se de brega tudo aquilo que parece vir repleto de exagero sentimental, preferencialmente de forma pouco ortodoxa em relação à cartilha tradicional. Nesse ponto, os conceitos de brega e romântico aproximam-se. Lembrando Fernando Pessoa, todas as cartas de amor, todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos, são naturalmente ridículas. Já nos versos de Caetano Veloso, ser romântico é cantar somente o que não pode mais se calar. Outras vezes, ainda, o termo brega é confundido com antigo, o que torna o rótulo transitório. Qualquer que seja o conceito, temos todos um lado brega, que não resiste a sair cantarolando músicas verdadeiramente populares.

É próprio do ser humano procurar seguir um comportamento padrão e evitar se distanciar muito daquilo que é definido como convencional, desde que o padrão e o convencional, aí, sejam aqueles determinados por seus iguais, num círculo vicioso e retroalimentado. Algo que o diferencie ou destaque perante os demais, como se existisse um padrão A e um padrão B, divisão, em geral, definida pelo lado A. Enfim, uma busca por ser igual aos iguais, mas diferente dos diferentes.

Ainda que próprio da natureza humana, no ramo musical, esse pensamento delineou-se de forma mais clara entre os anos 60 e 70. Uma das demonstrações disso foi o surgimento, nesse período, da sigla MPB para designar uma música diferenciada, curiosamente denominada música popular brasileira (se bem que o popular, aí, está em oposição a erudito). Era época de mudanças, em que a polarização entre correntes políticas refletiu-se, também, na música. De um lado, canções de protesto, nacionalismo, de outro, Tropicalismo, guitarras elétricas. De um lado, a Bossa Nova dos universitários e intelectuais, do outro a Jovem Guarda da juventude despolitizada, um dos pilares do estilo que viria a ser caracterizado como brega.

Nessa época, popularizou-se o rótulo de cafona, para designar o mau gosto e, por conseguinte, cantores e músicas consideradas de qualidade inferior. Vem daí minha primeira referência desse estilo de música: Eu não sou cachorro não, de Waldick Soriano, que virou até título de livro sobre o tema. O compositor Paulo Sérgio Valle, autor de O cafona, tema de novela de mesmo nome da Globo, ironicamente, representou um caso emblemático de trânsito livre entre os diversos caminhos musicais: compôs Viola enluarada e Preciso aprender a ser só, com o irmão Marcos Valle, Sábado e Evidências, com José Augusto.

Nos anos 70, multiplicaram-se os fenômenos (Amado Batista, Odair José, Fernando Mendes) de uma música que, livre de qualquer patrulhamento ou direcionamento por parte da intelligentsia, ou burritsia, transbordava temas passionais, dramáticos, bizarros, de que O fruto do nosso amor é exemplo clássico: “No hospital, na sala de cirurgia, pela vidraça, eu via você sofrendo a sorrir. E seu sorriso aos poucos se desfazendo, então vi você morrendo, sem poder me despedir”. Outras honravam discriminados ou excluídos, como empregadas domésticas (Deixa essa vergonha de lado*), prostitutas (Eu vou tirar você desse lugar / Eu vou levar você pra ficar comigo / E não interessa o que os outros vão pensar”), cadeirantes (Cadeira de rodas) e anônimos (A desconhecida).

Nos anos 80, o cafona virou brega e aquela avacalhação positiva da época, da qual Chacrinha foi a melhor representação, provocou uma rearrumação e juntou tudo num só caldeirão: o brega invadiu as fm’s. Vieram, em seguida, como uma avalanche, o pagode, o forró estilizado e o sertanejo, variações mais simplificadas, em letra e melodia, dos tradicionais samba, forró pé-de-serra e música caipira. O amor permanecia como tema central, a cicatrizar cotovelos doloridos, por meio de canções como Não aprendi dizer adeus e Nuvem de lágrimas (sucessos de Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó), em shows caros e bem produzidos.

Não tardou a se tentar nova separação, inclusive no dial, torcido junto com o nariz dos descontentes. Além disso, de lá pra cá, a pirataria - que não se restringe à camada menos favorecida da população -, a despeito de seus aspectos negativos, teve o mérito de tornar o mercado de discos mais acessível a esse grupo, tornando-se, para os sem-internet, uma alternativa aos downloads em banda larga. Surgiu, então, uma espécie de brega do b, um mercado paralelo, reivindicando de volta para si o que fora apropriado por ouvidos medianos (de classe média), frequentadores dos caros hall's da vida.

O conceito de brega na música, vale salientar, engloba não apenas a canção, mas também o intérprete - sua voz, postura, vestuário e o que mais possa ser objeto de comparação, ou seja, tudo. E tudo depende da maneira como se vê, o que explica como uma mesma canção pode ser recebida de maneiras diferentes, quando interpretada por nomes da MPB ou por cantores mais populares. A elite narcisista acha feio o que não é espelho.

Obs.: Escute aqui outro clássico do cancioneiro brega: Prometemos não chorar (Barros de Alencar), com destaque para o imenso esnobismo do personagem e o barulhinho da xícara em “- seu café está esfriando”.



* Deixe essa vergonha de lado (Odair José / Andreia Teixeira)

Eu já sei que nessa casa onde você diz morar
Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar
Não é a sua casa

Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo
E que se você pudesse fugia desse mundo
E nunca mais voltava

Eu já sei que esse garoto que você leva pra brincar
E que todo dia na escola você vai buscar
Não é o seu irmão

Ele é filho dessa gente importante
E às vezes também é seu por um instante
Apenas dentro do seu coração

Deixe essa vergonha de lado
Pois nada disso tem valor
Por você ser uma simples empregada
não vai modificar o meu amor

Eu já sei por que você não me convida pra entrar
E se falo nessas coisas você procura disfarçar
Fingindo não entender

Eu já sei por que você não me apresenta aos seus pais
Eu entendo a razão de tudo isso que você faz
É medo de me perder

Eu já sei que na verdade nada disso você quis
você simplesmente pensou em ser feliz
Aí não quis dizer

Mas você de uma coisa pode ter certeza
O amor que você tem por mim é a maior riqueza
Que eu preciso ter

31.10.10

Dedicado a você

Não obstante as musas inspiradoras, reais ou não, citadas em algumas homenagens nomeadas, sobre quem já escrevi em outra ocasião (A esses seres humanos), a música, na maioria das vezes, procura ser o mais genérica possível. Talvez para permitir que as diferentes pessoas que a escutam apropriem-se de seus versos de acordo com suas próprias experiências de vida.

Para atingir tal fim, por vezes, faz uso de pronomes pessoais, para gerar citações impessoais. Assim, em Eu e ela, do repertório de Roberto Carlos, Ela e eu, de Caetano Veloso, Eu te amo, de Chico Buarque e Tom Jobim ou Odeio você, também de Caetano, os pronomes podem representar qualquer um de nós. Outras vezes, a canção faz uso de pronome possessivo, que também permite apropriação, o que faz com que As minhas meninas, de Chico, Sua estupidez, de Roberto ou Nosso estranho amor, de Caetano, possam ser de qualquer um.

Há, também, homenagens implícitas, de destinatário definido, mas que, por também não citarem nomes, adquirem o mesmo caráter genérico das anteriores. É assim Fera ferida e Do fundo do meu coração, que Roberto compôs quando estava em processo de separação num casamento. Também no ramo da separação, Gilberto Gil compôs, para a ex-esposa Sandra, uma das mais belas declarações de amor findo, Drão (O amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão, tem que morrer pra germinar).

Ao ator River Phoenix, que este ano completaria 40 anos, Milton Nascimento dedicou uma também bela canção cujo título era o próprio nome do homenageado, o qual morreu pouco depois, aos 23 anos (Como teu nome diferente / Uma paisagem nos induz / Uma paisagem de inocência / Mas que se sabe e que conduz. / Conduz agora este momento / O pensamento e os olhos meus / brilhando de emoção e grato / alguém que só te conheceu num filme que viu tantas vezes / Este poema aconteceu). Fernando Brandt, Márcio e Lô Borges, companheiros de Milton no Clube da Esquina, fizeram, para Lennon e McCartney, Para Lennon e McCartney.

Nando Reis compôs All Star, para Cássia Eller, que também a gravou (Estranho é gostar tanto do seu all star azul / Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras / Satisfeito sorri / Quando chego ali / E entro no elevador / Aperto o 12 que é o seu andar / Não vejo a hora de te reencontrar / E continuar aquela conversa / Que não terminamos ontem / Ficou pra hoje). Temos, também, referências e citações múltiplas, como a Festa de arromba de Roberto e Erasmo, que reverencia a turma da Jovem Guarda ou a homenagem de Chico, Para todos, dedicada a seus colegas músicos.

Na categoria a finados, lembro de outro trabalho afinado: Um ser de luz, composta por Paulo César Pinheiro (com João Nogueira e Mauro Duarte), após perder a esposa Clara Nunes (E ela se foi pra cantar / Para além do luar / Onde moram as estrelas / E a gente fica a lembrar / Vendo o céu clarear / Na esperança de vê-la, sabiá / Sabiá / Que falta faz tua alegria / Sem você / meu canto agora é só melancolia).

Dos compositores da MPB, Caetano é um dos mais atuantes nessa bela arte de prestar homenagem por meio de canções. Em sua lista, constam Rapte-me camaleoa, para Regina Casé; Leãozinho, para Dadi, ex-integrante dos grupos Novos Baianos e A Cor do Som (o músico também foi uma espécie de quarto tribalista e é pai de André Carvalho, compositor de Tudo diferente, sucesso na voz de Maria Gadú); Escândalo, para Ângela Rô Rô, linda e sensível homenagem da qual quem acompanhou a forma como a mídia tratava os “escândalos” da cantora, décadas atrás, entende cada palavra (Rompe a manhã da luz em fúria a arder / Dou gargalhada, dou dentada na maça da luxúria pra quê? / Se ninguém tem dó, ninguém entende nada / O grande escândalo sou eu, aqui, só). E mais: Tigresa e Trem das cores, para a atriz Sônia Braga, esta última uma encantadora descrição de viagem, em que nós, ouvintes, seguimos junto.

É comum perpetuarmos certos erros de escuta de canções e alguns deles, quando cometidos por grande número de pessoas, tornam-se até clássicos, como a famosa troca compulsiva de biquíni, em Noite do prazer, de Cláudio Zoli, em que, em vez de “tocando B. B. King sem parar”, muitos cantavam “trocando de biquíni sem parar”).

A esse respeito, cabe observação curiosa sobre Tigresa. Depois de quase três décadas escutando-a, notei, alertado por um amigo, parte engraçada da letra, para a qual, até então, não tinha atinado, que nem Gabriela, quando veio pra esse mundo: “as garras da felina me marcaram o coração, mas as besteiras de menina que ela disse, não”. Faltava, na minha escuta, a percepção da vírgula antes do não (determinada, eu acho, pela elipse sintática presente na oração) e, por isso, eu entendia a mensagem como se ela, a tigresa ou felina, dissesse não às besteiras de menina e não que era ela quem dizia as besteiras, as quais, por sua vez, não marcavam o coração do leão. Meu entendimento, porém, soava meio sem sentido, até porque, se fosse esse o caso, a frase estaria mal construída.

Dedicar a alguém o fruto do nosso trabalho é algo de uma generosidade e delicadeza ímpar que, no caso particular da música, ou da arte em geral, ainda tem o mérito do compartilhamento com o público e, muitas vezes, pode ficar para a posteridade. Dedicado a você* é nome de uma música de Dominguinhos e Nando Cordel, mais uma da dupla que nos legou várias belas canções. O pronome ‘você’, do título, expande o universo alvo da letra da música ao infinito – ou a todas as pessoas -, mas, ao mesmo tempo, restringe-o ao particular – ao pessoal, como o próprio pronome: simplesmente dedicado a você. Seja você quem for, seja o que Deus quiser.



*Dedicado a você (Dominguinhos/Nando Cordel)

Vem, se eu tiver você no meu prazer
Se eu pudesse ficar com você
Todo o momento, em qualquer lugar

Ah! Se no desejo você fosse o amor
Durante o frio fosse o calor
Na minha lua, você fosse o mar

Vem, meu coração se enfeitou de céu
Se embebedou na luz do teu olhar
Queria tanto ter você aqui

Ah! Se teu amor fosse igual ao meu
Minha paixão ia brilhar e eu
Completamente ia ser feliz

17.10.10

Uma vida que terminou aos 40

“A vida é aquilo que acontece enquanto planejamos o futuro” (John Lennon)

No último dia 9 de outubro, John Lennon* teria completado 70 anos. Morreu aos 40, há 30, em 80. Datas redondas. A geração que cresceu nos anos 80, após sua morte, não acompanhou a beatlemania, mas viveu a comoção provocada por seu assassinato, quando pôde entender melhor seu valor para a música em nosso planeta, devido a um novo momento de grande exposição do cantor na mídia, ocasionada pelo fato. Essa geração, que descobriu o sonho depois que o sonho acabou, percebeu que o mundo era redondo como os óculos de Lennon.

A morte prematura deixa uma sensação desagradável de falta, de algo por fazer ou que não pôde ser concluído. Música interrompida no meio da execução. No caso de Lennon, além de precoce, uma morte estúpida, que expôs, da pior forma, como ocorrera com Luther King e Gandhi, a fragilidade da utopia pacifista que ele pregava em seu trabalho, suas canções. Com o fim dos Beatles no auge do sucesso, as especulações e desejos de uma volta do grupo permaneceram por toda a década de 70 e o tiro disparado contra Lennon foi uma espécie de tiro de misericórdia, também nesse aspecto. O fim do sonho de toda uma geração.

Um ano antes, com o sonho ainda possível, o cantor Belchior compôs Comentário a respeito de John, que dizia: “João, o tempo andou mexendo com a gente, sim. John, eu não esqueço, a felicidade é uma arma quente”. No mesmo ano, o compositor mineiro Tavito, da turma do Clube da Esquina, que recebeu nítida influência dos Beatles, cantava, em Rua Ramalhete (Tavito / Ney Azambuja), sobre os rapazes de Liverpool: “Será que algum dia eles vem aí, cantar as canções que a gente quer ouvir?”. A resposta sombria não tardou a chegar.

Desde então, homenagens a Lennon sucederam-se, algumas em forma de música. Em 1981, a cantora Simone gravou, no disco Amar, Naquela noite com Yoko (Sueli Costa / Abel Silva). Na letra, o compositor falava do impacto emocional que lhe provocara a morte de Lennon, cuja falta era comparada a um pedaço de sua vida que se ia: “E a cada passo eu chorava, e a cada passo sentia que, de minhas veias, um pouco mais de vida escorria”. A citação explícita a Yoko, longe de apenas servir pra rimar com louco, parecia mais uma tentativa de unir-se, na dor, àquela que sempre fora olhada de viés pelos fãs dos Beatles (o mesmo olhar que, reza a lenda, Paul McCartney lhe dirigia, ao cantar o refrão: “get back to where you once belonged” - volte pro lugar de onde veio).

Na mesma época, os outros ex-beatles gravaram, juntos, All those year ago, de George Harrison, mais um tributo a John Lennon. Duas outras homenagens partiram do cantor britânico Elton John. Com o parceiro Bernie Taupin, Elton compôs, pouco depois da morte de Lennon, Empty garden, em que compara a vida na ausência do amigo com um jardim vazio: “a gardener like that one, no one can replace”** - um jardineiro assim, ninguém pode substituir (seu grito, "hey, hey, Johnny", é de cortar o coração). Sozinho, Elton compôs, também, para Lennon, a música instrumental The man who never died.

Além de um nome em comum, uma grande amizade unia Elton John e John Lennon. A última aparição de Lennon em palco foi em 1974, num show do amigo, com quem cantou algumas músicas, entre elas Lucy in the sky with diamonds, clássico dos Beatles. Curioso lembrar que o título dessa canção surgiu de um desenho escolar de Julian Lennon, filho de John, para a colega Lucy, sendo as iniciais LSD uma mera e feliz coincidência, segundo relato de Paul McCartney, citado em Many years from now, sua biografia autorizada, escrita pelo amigo Barry Milles (a canção também foi sucesso na voz de Elton, assim como One day at a time, da carreira solo de Lennon***).

Os anos 60 foram, de fato, revolucionários, inovadores e, se tivessem ocorrido hoje, cinco décadas depois, ainda o seriam. Paul McCartney afirmou, em 1994, também em depoimento a Many years from now: “... Não dá mesmo para acreditar que já faz trinta anos desde a década de 60. … Sinto que os anos 60 estão para chegar. Que estamos numa espécie de dobra temporal e que eles ainda estão para acontecer. … Eles me parecem um período mais no futuro que no passado”. Claro que essa década foi fruto do que veio antes, como a arte vanguardista do pós-guerra, da qual, por sinal, Yoko Ono fez parte, o que, de certa forma, fecha um ciclo.

O livro John Lennon – A vida, de Philip Norman, mostra o biografado como uma personalidade conflituosa, “violenta e carinhosa, perspicaz e ingênua, marcada em igual medida pela genialidade e pela extrema insegurança”, conforme texto de contra-capa da publicação. O cantor, que cresceu afastado dos pais, criado por uma tia, desde os seis anos, perdeu a mãe aos dezessete, no momento em que se reaproximava dela. A ausência deles em sua vida é retratada na autobiográfica canção Mother, de sua carreira solo (Mother, you had me / But I never had you / I wanted you / But you didn't want me / ... / Father, you left me / But I never left you / I needed you / But you didn't need me / So I just got to tell you / Goodbye). 

O fim do grupo, atribuído, no calor do momento, à influência de Yoko Ono sobre o marido, parece ter tido, na verdade, o mesmo motivo do fim de qualquer banda: a necessidade dos integrantes de mais espaço pra suas ideias. Olhando por esse aspecto, os Beatles, maior fenômeno da música pop mundial, que descobriu a receita do sucesso, seja com canções e arranjos sublimes, seja com músicas comerciais e de letras fáceis, contando com músicos e compositores de qualidade, dois deles disputando a liderança do grupo, até que duraram bastante.

* Veja trecho de documentário sobre Lennon, em inglês (16’)



** Elton John - Empty Garden


5.10.10

Flor do nordeste

Após a efervescência dos anos 60, período de tantos movimentos culturais de renovação, a década seguinte representou a colhida dos frutos, a consolidação e o auge da MPB, bem representada por nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, entre outros.

Depois da bonança, vem a tempestade e, com esses nomes já consolidados, era hora de buscar movimentos rumo a outras direções, deixar-se levar por outros ventos. De posse de régua e compasso baianos (aquele abraço), que definiram um novo eixo musical para a MPB - ou ampliaram-no para além do Rio-São Paulo -, foi só seguir a reta ou reforçar a que, mais atrás, fora traçada por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, para o baião e o forró. Foi assim que, misturando todos esses estilos, uma nova leva de retirantes invadiu o sudeste, entre eles Elba Ramalho, que se tornou uma espécie de musa nordestina da geração pós-festivais, no final dos anos 70*.

De Pernambuco, fizeram parte dessa turma Alceu Valença e Geraldo Azevedo, reforçando uma tendência de pouca presença feminina na música do estado (e não só nela, na política, por exemplo, também). Sempre que a música pernambucana despontou nacionalmente, os nomes de destaque foram, com raras exceções, do sexo masculino, seja na MPB de Lenine, seja na época áurea do frevo (Antônio Maria, Nelson Ferreira, Capiba), do forró (Luiz Gonzaga, Dominguinhos) ou do manguebeat (Chico Science, Fred Zero Quatro, Otto). A paraibana Elba Ramalho, por sua relação bem próxima com Pernambuco, cobriu um pouco essa lacuna.

Também por essa afinidade recíproca, o aniversário de 473 anos do Recife, comemorado no último dia 12 de março, teve como principal atração o show de Elba, que celebrou, também, seus trinta anos de carreira. A apresentação foi registrada e resultou em seu trigésimo trabalho, marco zero - ao vivo, que acaba de ser lançado pela gravadora Biscoito Fino, em CD.

Para quem não conhece a capital pernambucana, vale salientar que o título do disco faz referência ao local onde ocorreu o evento. A praça Rio Branco, no bairro do Recife (também conhecido como Recife Antigo), centro histórico do município, ficou conhecida pelo nome de praça do Marco Zero, a partir de 2000, quando, por ocasião das comemorações da virada do milênio, foi reformada e ampliada (sob certo protesto, por ter derrubado algumas árvores), transformando-se, a partir de então, no principal palco de apresentações ao ar livre local, sobretudo durante o carnaval. O nome é referência ao fato de ali ter surgido a cidade e dali serem medidas todas as distâncias aos demais pontos do município e do estado.

Discos comemorativos de datas especiais, por terem uma certa obrigação de serem representativos de um período – e é difícil que seja diferente -, tornam-se uma espécie de mais do mesmo e mesmo de mais. Em marco zero - ao vivo, Elba repetiu essa fórmula, mas procurou equacioná-la com outras variáveis. Contou com participações especiais (Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Lenine, Alcione, Chico César e André Rio) e, de alguns compositores constantes em sua carreira, escolheu canções que ainda não faziam parte de seu repertório, como Anunciação, de Alceu Valença, que abre o show e o disco***.

Dentro do mais do mesmo, Zé Ramalho, por exemplo, não poderia ficar de fora. Dele, foram quatro canções: Banquete de Signos, Chão de Giz, Admirável Gado Novo e Frevo Mulher, sendo as duas últimas inéditas no repertório de Elba. Geraldo Azevedo e Nando Cordel contribuíram com duas, o primeiro com Canta coração e Chorando e cantando, o segundo com É só você querer e De volta pro aconchego** – uma das canções mais bonitas e representativas da carreira de Elba.

Chico Buarque marcou presença com O meu amor, outra canção importantíssima do repertório da cantora (da Ópera do Malandro), que abriu as portas para o seu reconhecimento nacional (ao lado de sua atuação na peça Morte e Vida Severina) e Morena de Angola, mais conhecida na voz de Clara Nunes. Não sonho mais, também de Chico e, essa sim, a cara de Elba, ficou de fora e fez falta. Completando o disco, Pavão Mysterioso (Ednardo), Chuva de sombrinhas (André Rio / Nena Queiroga), frevo pouco conhecido nacionalmente, mas sucesso no carnaval pernambucano e Queixa (Caetano Veloso), de cujo autor ela recebeu o apelido de Flor da Paraíba, que virou título de um de seus discos (1998).

Lenine, outro parceiro constante, sugeriu participar não com uma canção de sua autoria, mas na interpretação de Queixa, num dueto com Elba. Outra curiosidade do disco, dentro da porção diferente do mesmo, foi a presença de um único forró, resgate do disco anterior, Balaio de amor (2009): É só você querer, certamente não o mais importante ou representativo da carreira da cantora. Logo ela, que levou o popular ritmo de volta às FM’s, com qualidade, por meio de inúmeros sucessos, desde Não sonho mais e Bodocongó, do primeiro disco, Ave de prata (1979), cuja canção-título, por sinal, não é um forró, mas também merecia ter entrado no novo disco, dentro do quinhão que coube a Zé Ramalho.


* Leia também: Nação nordestina – Parte I e Nação nordestina – Parte II



** De volta pro aconchego (Dominguinhos / Nando Cordel)

Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero um abraço
Para aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade

Que bom poder estar contigo de novo
Roçando teu corpo e beijando você
Pra mim tu és a estrela mais linda
Teus olhos me prendem fascinam
A paz que eu gosto de ter

É duro ficar sem você vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Me alegro na hora de regressar
Parece que eu vou mergulhar
Na felicidade sem fim


*** Abertura do show no Marco Zero (12/03/2010)

19.9.10

A arte de sentir muito

Quando escrevi sobre Os Mutantes pela primeira vez, em 2006, ainda não tinha vivido duas experiências marcantes relacionadas ao grupo. A primeira, no ano seguinte, foi tê-los visto no Abril pro Rock, Recife, num dos shows de sua turnê de retorno, com Zélia Duncan no lugar de Rita Lee. A segunda foi assistir ao documentário Loki - Arnaldo Baptista (Brasil, 2008, direção, roteiro e edição de Paulo Henrique Fontenelle, disponível em DVD), exibido no festival de cinema que fez parte da Mostra Internacional de Música em Olinda (Mimo), edição 2010, um ano após o lançamento do filme em circuito nacional.

Além de dar nome ao documentário, Loki (que, imagino, Arnaldo Baptista relaciona a “louco” e, segundo a Wikipedia, é um deus da mitologia nórdica, visto ora como bom, ora como mau) é título do primeiro trabalho do músico (1974) após sua saída dos Mutantes, considerado por especialistas um dos melhores da nossa música (a diferença é que, no disco, o nome tem uma interrogação ao final: Loki?). O disco é emblemático e representa a passagem de sua fase mutante - com Rita Lee e Sérgio Dias -, para o início de sua atuação solo (do tom Lee-Sérgico para o lisérgico, mais ácido).

A ausência de Rita Lee, personagem importante na história do protagonista do filme, é sentida (em duplo sentido), mas só reforça sua presença na vida do músico. Um relacionamento forte que, como tal, deixou marcas. Num dos depoimentos impactantes do documentário, em que se refere à cantora, Arnaldo o faz aparentemente sem mágoa e com carinho. Diz que ela o colocou no hospício, mas observa: em parte com razão. A cantora, por sua vez, já afirmou, em entrevista à televisão, que o casamento entre eles foi uma brincadeira de amigos. Outro ponto interessante é que vários depoentes dizem que a cantora abandonou o grupo, enquanto ela sempre declarou ter sido expulsa.

Embora não tenha dado sua versão dos fatos neste filme, Rita cedeu todos os direitos de sua imagem ao documentário e, segundo o diretor Fontenelle, foi bastante gentil nesse aspecto: “... mesmo ela não tendo dado um depoimento, ela está presente o tempo todo no filme e de uma maneira bem bonita, dando um aspecto mais lírico ao filme. O filme mostra a Rita Lee da época dos Mutantes e como ela aparece na lembrança do Arnaldo, linda, imaculada.”.

Anos depois da separação dos Mutantes, Arnaldo tentou suicídio - segundo ele por estar sendo mal entendido -, jogando-se do terceiro andar de uma clínica, onde estava internado por problemas com drogas. Sobre o episódio, ele fala com serenidade e de forma comovente, com uma delicadeza própria de quem possui alma de criança, como o amigo e admirador Sean Lennon, filho de John e Yoko, bem o definiu. A visível admiração de Sean, em seu depoimento ao filme, apenas comprova o reconhecimento internacional do talento e da obra do músico brasileiro, perceptível, também, em outras passagens.

Um dos melhores depoimentos de Loki é o de Sérgio Dias, que reafirma toda a admiração que tem pelo irmão Arnaldo e faz um pedido público de desculpas, por não o ter entendido como deveria. Segundo Sérgio, a reaproximação deles – como na temporada de shows de retorno dos Mutantes, em 2006 - produziu um efeito que quinze anos de análise não produziriam (uma amiga observou bem que Rita Lee, ao não participar diretamente desses shows e do filme, negou esse bem a si mesma).

Ao longo do documentário, Arnaldo Baptista pinta uma espécie de quadro da sua vida, em que se destacam uma expressão (sinto muito) e uma imagem feminina. A primeira tanto pode ser uma expressão de pesar como uma afirmação de alguém dizendo-se muito sensível (sentir muito já é, por si só e literalmente, um duplo sentido, um sentir em dobro). A figura feminina, por sua vez, é desenhada com olhos azuis que, ao final, transformam-se em castanhos. A passagem é sutil aos olhos dos espectadores, mas essa imagem é definida, pelo próprio Arnaldo, como sendo a “transmutação do amor” e representa, segundo o diretor do filme, uma fusão das duas paixões do músico: Rita Lee e Lucinha Barbosa, atual esposa.

À pergunta título do disco solo de 1974 (Loki?), o filme de 2008 foi resposta definitiva: Loki. Não um louco qualquer, mas um mutante (segundo o Aurélio, alguém que apresenta características marcadamente distintas das de seus ascendentes). Um louco com quem me identifiquei, para além do sobrenome comum. Vai ver todo Baptista tem um pouco de loki dentro de si. Sinto muito.

“Arnaldo é responsável por quase tudo que aconteceu de 1967 para frente” (Rogério Duprat, responsável por apresentar os Mutantes a Gilberto Gil, por ocasião do festival da Record de 1967, quando estes interpretaram, juntos, a segunda colocada, Domingo no parque, da qual Duprat foi o arranjador).

“Missão e destino, herói de guerra, herói mítico, todo ferido. Não são feridas expostas, muitas vezes. São feridas internas, mas essas feridas são concentração de sabedoria, concentração de conhecimento” (Tom Zé)

“Ele parece que tá no mundo da lua, mas, na verdade, ele deu o jeito dele de ficar feliz” (Zélia Duncan, que substituiu Rita Lee no retorno dos Mutantes, em 2006).

“Faço a maior força possível pra alcançar esse âmbito de comunhão, onde eu falaria x e eles entenderiam x, não y” (Arnaldo Baptista).

Obs.: Clique aqui para escutar um trecho de Balada do louco (Arnaldo Baptista / Rita Lee) , ao vivo, no Barbican Theatre, Londres, 2006 e sinta muito.

Encantamento (Arnaldo Baptista)

Ênfase dou ao afeto
Contente com o tente ser feliz
Colecionando selos
Só porque sou louco e gosto
De sê-lo assim

Como uma gêmea siamesa
Que uma das duas cabeças
É careta, a outra...
Gosto não se discute
Psicodeliciosamente
Curto o encantamento
Simbiótico


6.9.10

Orações descoordenadas e insubordinadas para todos os períodos – segunda edição

(Não se preocupe, isso passa, é só uma frase)


“A ordem dos fatores não altera os fatores.”

“Num cálculo otimista, a matemática do futuro faz um acerto de contas e muda os conceitos: um com um é comum.”

“Num tiro tiro uma vida. Quem parte é parte de mim. Sou um suicida.”

“Vida é amar-te. Amor sem ti é a morte. Estou entre a vida e a morte.”

“Estou no outono. Vão pro inverno e vocês me verão.”

“Quando se diz que alguém não sabe da missa um terço, está se falando de fração (1/3) ou do terço com que se reza?”

“Se temos afeição, admiramos a feição e tudo é perfeição.”

“Quem com ferro fere, confere que está ferrado.”

“O que eu digo se escreve. Por isso digo pouco. … … E escrevo tanto.”

“Com o travo travo uma luta. Não cedo tão cedo. Luto contra o luto.”

“Penso, logo torto.”

“Para escrever certo em inglês, erre (R). Certo e errado não são conceitos universais.”

“Sanduíche de afeto: big smac, all face, too much.”

“A transposição do São Francisco é um divisor de águas. Faz jus à doutrina franciscana de que é dando que se recebe.”

“A lenta telefonia banda larga do Brasil vende gateway por lebre.”

“Carta do São Paulo ao Corinthians: Santos, Santos, Santos! O céu e a terra proclamam a vossa glória!”

O Vaticano tem papas na língua.

“Eyjafjallajokull. O vulcão islandês spelle letras, lavas e lá vai fumaça.”

“Lógica capitalista internacional: só os ricos podem enriquecer urânio.”

“Com celulari fora de área, raia procura um fixo para novas ligações.”

“reSPirar tá difícil.”

20.8.10

Era um, era dois, era cem

(Era dos festivais)

As imagens dos festivais do final dos anos 60 foram, ao longo das décadas seguintes, bastante exibidas, sobretudo na televisão, a ponto de muitas delas nos parecerem bem familiares. As cenas mais marcantes, porém, eram, em geral, fragmentadas e misturavam várias edições de festivais, entre os das tv’s Record e Globo, principalmente. No cinema, lembro de duas boas produções recentes que abordaram o assunto de alguma forma: O Sol – Caminhando contra o vento (2006) e Palavra encantada (2008). Agora, chega às telas Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, diretamente voltado para o tema, mais especificamente para o III Festival de Música Popular Brasileira, da tv Record.

Essa edição do festival da Record - nossa MTV do passado, com vários programas musicais e cantores contratados -, está entre as mais lembradas de todas. O filme tem como um dos pontos fortes as apresentações na íntegra de algumas das finalistas desse festival, entremeadas por entrevistas da época com os artistas concorrentes, bem como ótimos depoimentos atuais.

É sempre uma experiência interessante ver artistas hoje consagrados ainda sem a bagagem dos anos vividos, na flor da idade e com ideias à flor do cérebro, prontas para desabrochar. Um Chico Buarque com as conexões cerebrais a todo vapor, exercitando-se para produzir o que viria a ser, mais adiante, um dos maiores tesouros da música popular brasileira; um Roberto Carlos ainda na Jovem Guarda, antes de sua melhor e pior fase; um Caetano Veloso veloz, em pleno movimento e um Gilberto Gil genial, acompanhado de uma Rita Lee linda e mutante, com o coração literalmente à flor da pele.

Foi nessa edição inovadora do festival que Gil e Caetano romperam as barreiras do som - acompanhados pelas guitarras elétricas dos Mutantes e dos argentinos Beat Boys -, que Roberto interpretou um samba (Maria, carnaval e cinzas - 5º lugar) em plena Jovem Guarda e que Chico iniciou seu repertório de canções politicamente engajadas. Num período em que nacionalismo era sinal de protesto contra o regime vigente, Caetano, provocativo, protestou contra o protesto. Não bastasse ter usado guitarras em Alegria, alegria (4º lugar), que, entre outras, fazia citações à Coca-Cola, ícone do imperialismo dos Estados Unidos, o cantor ainda se fez acompanhar por uma banda argentina.

Embora os festivais fossem programas organizados por emissoras de televisão e transmitidos por esse meio de comunicação, foi o palco onde aconteciam que constituiu o verdadeiro espaço democrático, em plena ditadura, devido à imensa participação popular. O organizador do festival da Record, Solano Ribeiro, afirma que os primeiros festivais dos anos 60 já haviam instituído a vaia como personagem, fato que se repetiu na ediçao de 67, onde a distinta protagonista foi responsável por algumas das imagens mais marcantes, como a discussão do cantor Sérgio Ricardo com a plateia, que culminou com um violão quebrado.

Um fato curioso é que, para levar esses protagonistas – aplausos e vaias - ao público de casa, Zuza Homem de Mello, engenheiro de som responsável pela transmissão televisiva, colocou um microfone no teto do teatro, como afirma em depoimento ao filme. Ficou claro que o que sempre vi como má qualidade do som na transmissão - por conta das limitações da época -, deveu-se, em boa parte, a esse recurso propositadamente utilizado.

Uma característica interessante, que talvez seja a cereja do bolo na receita de sucesso deste que pode ser considerado o melhor dos festivais, foi a qualidade dos arranjos das canções vencedoras, as três primeiras delas valendo-se do artifício da crescente empolgação até o desfecho apoteótico.

No arranjo de Magro (MPB-4) para Roda-Viva (3º lugar), a música vai acelerando o andamento, como uma roda girando cada vez mais rápido, até terminar de súbito, impelindo o público ao aplauso caloroso (segundo Chico, os aplausos pareciam estar previstos no arranjo). Artifício semelhante é usado em Ponteio*, de Edu Lobo (1º lugar), no refrão “quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”. Já o arranjo premiado de Rogério Duprat para Domingo no parque (2º lugar) usa a alternância de ritmo e andamento, de acordo com a narrativa, refletindo na alternância de sensações, até terminar com um empolgado “êh êh êh êh”, em coro.

Mesmo sendo inegável o caráter democrático dos festivais, a ânsia por novos tempos, o acirramento dos ânimos e os protestos por conta da ditadura geraram certas distorções ou exageros, como Chico ter sido vaiado no festival seguinte, por ter vencido, com Sabiá, em detrimento de Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. Por outro lado, as músicas de cunho político mais explícito, como a de Vandré, ou mesmo Roda-Viva de Chico, não foram vencedoras, ainda que Sabiá e Ponteio tenham, também, forte mensagem política.

Outro aspecto que pode ser observado por meio dos depoimentos dos artistas ao filme é que a exposição exagerada, durante e após os anos de festivais, causou-lhes um certo incômodo, a ponto de vários deles, como Chico (“Não penso muito nessas histórias”), Caetano (“Queria me livrar de Alegria, alegria, como Chico se livrou de A banda”) e Edu (“Não tenho uma música só”), passarem a impressão de pouco caso em relação àqueles anos. Não se pode negar, porém, a qualidade de um festival que se deu ao luxo de eliminar uma canção como Eu e a brisa** (Johnny Alf), fechando as portas a surpresas do inesperado ou a alguém que a quisesse escutar.



* Ponteio (Edu Lobo/Capinan)

Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse ou amor ou dinheiro

Era um, era dois, era cem
Vieram pra me perguntar
Ô, você, de onde vai, de onde vem
Diga logo o que tem pra contar

Parado no meio do mundo
Senti chegar meu momento
Olhei pro mundo e nem via
Nem sombra, nem sol, nem vento

Quem me dera agora
Eu tivesse a viola pra cantar
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola pra cantar

Era um dia, era claro, quase meio
Era um canto calado, sem ponteio
Violência, viola, violeiro
Era morte em redor, mundo inteiro

Era um dia, era claro, quase meio
Tinha um que jurou me quebrar
Mas não lembro de dor nem receio
Só sabia das ondas do mar

Jogaram a viola no mundo
Mas fui lá no fundo buscar
Se eu tomo a viola ponteio
Meu canto não posso parar, não

Era um, era dois, era cem
Era um dia, era claro, quase meio
Encerrar meu cantar já convém
Prometendo um novo ponteio

Certo dia que sei por inteiro
Eu espero, não vá demorar
Este dia estou certo que vem
Digo logo o que vim pra buscar

Correndo no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar pra cantar


** Eu e a brisa (Johnny Alf)

Ah! se a juventude que esta brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só pra ser um sonho

Dai então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então pra nós seria

E depois que a tarde nos trouxesse a lua
Se o amor chegasse eu não resistiria
E a madrugada acalentaria a nossa paz

Fica, oh brisa, fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar

6.8.10

Tradução mais que completa

A cidade de São Paulo, característica comum às metrópoles, é formada por várias tribos que pouco ou nada se misturam, buscam cada qual seus espaços e traduzem o lugar de várias maneiras, em diferentes dialetos. A música vinda de lá reflete essa característica, a de ter várias características (e ao mesmo tempo nenhuma, como ser regional ou folclórica, a despeito da legítima música caipira ou  sertaneja, vinda do interior do estado).

Uma dessas traduções paulistanas – a mais completa, segundo Caetano Veloso - é a de Rita Lee, cantora que, por sua irreverência inteligente, sempre foi interessante de se escutar - cantando, mas sobretudo falando. Abrindo um parêntese para ilustrar essa irreverência, lembro de duas frases que já escutei ou li em entrevistas dela. Uma em que afirmava querer morrer no palco, o que, segundo ela, seria ótimo para o currículo e outra em que dizia não acreditar em avião: “Acredito em disco-voador, em avião, não”. Além disso, Rita foi transgressora desde o início da carreira, com os Mutantes, com quem formou a banda paulista do tropicalismo.

A vanguarda paulistana foi outra tradução interessante, seja pelo experimentalismo do músico Arrigo Barnabé (paranaense da turma paulista), pelas músicas faladas do grupo Rumo, de letras simplesmente inteligentes, pela irreverência do grupo Língua de Trapo ou pela marginalidade - no ótimo sentido - de Itamar Assumpção. Por terem perfil alternativo e independente, porém, não chegavam à grande massa. E para ser a mais completa, a tradução teria que unir todas essas qualidades: irreverência, inteligência, popularidade, transgressão, simplicidade.

O cantor francês Manu Chao – e ele não é o único - costuma dizer que quando quer conhecer bem uma cidade, costuma ir à rodoviária local. Segundo ele, é lá que se conhece, de verdade, o povo de um lugar, aquele que constitui sua melhor expressão e que não se encontra nos livros de história. E é nesse aspecto, da proximidade com seu povo, da simplicidade, sem perder a citada irreverência inteligente e transgressora, que o compositor Adoniran Barbosa – que faria cem anos hoje, 6 de agosto de 2010 - pode ser considerado a tradução mais completa das terras paulistanas. Um zumbi a despertar o samba de seu túmulo, novo quilombo de Zumbi, mais uma vez lembrando Caetano. Sampa, aliás, é outra completa tradução paulistana.

No hábito de contar histórias e falar sobre sua terra do ponto de vista de suas camadas populares, valendo-se de um linguajar de rica simplicidade, Adoniran Barbosa está para São Paulo como Noel Rosa pra o Rio de Janeiro, Dorival Caymmi para a Bahia e Luiz Gonzaga para Pernambuco. Entre as histórias que eles contam e criam, não sabemos bem o que é verdade ou lenda - e fazemos questão de não saber.

Um desses episódios que envolvem Adoniran diz que ele trabalhou como vendedor numa loja da rua 25 de março, na capital paulista e foi demitido por atender os clientes fazendo batucada no balcão. Outro caso diz que, após muitos anos trabalhando na rádio Record, o compositor paulista resolveu pedir aumento. O responsável pela gravadora disse-lhe que iria estudar o caso e que ele voltasse depois. Quando voltou, ao obter a resposta de que o caso ainda estava em estudo, saiu-se com esta: “Tá certo, o senhor continue estudando e quando chegar a época da sua formatura me avise”. O que menos importa é a veracidade, nesses casos.

Adoniran teve como maiores intérpretes de suas canções a cantora Elis Regina e o conjunto Demônios da Garoa, que registraram belas gravações de suas músicas mais conhecidas, Saudosa maloca e Trem das onze (essa última recebeu, também, excelente versão de Gal Costa). O compositor, que também foi humorista, direcionou a leveza de seu humor para versos como “Nóis se gosta muito mais / Nóis não usa os bleque tais” e canções como Tiro ao Álvaro, Samba do Arnesto ou mesmo a tragicômica Iracema, em que a protagonista da letra morre atropelada.

Nem só de alegria eram feitas as composições do sambista. Com Vinícius de Moraes, ele compôs Bom dia tristeza, de uma tristeza ímpar e a citada Saudosa maloca, de versos pungentes como “Que tristeza que nóis sentia / Cada táuba que caía / Doía no coração”*. Dia desses, citei, em texto, a poesia da frase “como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar” (Romaria - Renato Teixeira). Considero Saudosa maloca da mesma linha, quer pela simplicidade da linguagem, quer por expressar o mais puro sentimento, assim como Cidadão (de Lúcio Barbosa, cantada por Zé Geraldo), Súplica cearense (Gordurinha e Nelinho) e Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) que, nesses aspectos, beiram a perfeição.

A mudança de estilo de Adoniran Barbosa em Bom dia tristeza é algo que me faz lembrar Waldick Soriano, que, taxado de brega, sempre gerou comentários perplexos, por cantar, ao mesmo tempo, a nada sutil Eu não sou cachorro não e a romântica Tortura de amor, sucesso, tempos atrás, na voz de Maria Creuza (“Hoje que a noite está calma e que minh'alma esperava por ti, apareceste, afinal, torturando este ser que te adora...”). Mas tradução completa é assim mesmo: não deixa faltar nada. E joga as cascas pra lá!



Disco comemorativo (vários intérpretes): http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3060453/adoniran-100-anos/?ID=42F947637DA08010A262D0962&PAC_ID=30927


* Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa)

Se o sinhô não tá lembrado
Dá licença de contar
Ali onde agora está
Este edifício arto
Era uma casa véia, um palacete assobradado
Foi aqui seu moço
Que eu, Mato Grosso e o Joca
Construímos nossa maloca
Mas um dia
Nóis nem pode se alembrá
Veio os home com as ferramenta
E o dono mandô derrubá
Peguemos todas nossas coisas
E fumos pro meio da rua
Apreciá a demolição
Que tristeza que nóis sentia
Cada táuba que caía
Doía no coração
Matogrosso quis gritar
Mas em cima eu falei
Os home tá com a razão
Nóis arranja outro lugar
Só se conformemo
Quando o Joca falou
Deus dá o frio conforme o cobertor
E hoje nóis pega as paia
Nas grama do jardim
E pra esquecer nóis cantemos assim:
Saudosa maloca, maloca querida
Que dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida

12.7.10

Jabulani

Uma estrela maior, dividida entre seus três amores, recebe, neste vídeo, uma homenagem, numa versão da canção Teresinha, de Chico Buarque de Holanda, Alemanha, Espanha...



Jabulani

(Versão para Teresinha, de Chico Buarque de Holanda, Alemanha e Espanha)

O terceiro me chegou como quem vem de uma conquista
Trouxe um bicho do Borussia e um Podolski dialetista
Me mostrou Schweinsteiger e as vantagens que ele tinha
Me mostrou o senhor Özil, nem esperava que ele vinha
Me encontrou tão desarmada no fim da competição
E na última rodada, assustada, eu disse não

O segundo me chegou como quem chega a assustar
Trouxe um grupo eficiente que botava pra quebrar
Com um bom time no passado, esperou minha acolhida
Vacilou no fim da reta e a final tava perdida
Me encontrou tão desarmada que apanhou na decisão
E na última rodada, assustada, eu disse não

O primeiro me chegou com uma certeza danada
Ele não marcou Sjneider, nem por Sjneider perguntou
Assim como em Barcelona, foi metendo onde ele quer
Me ajeitou naquela grama e me tomou pelo pé
Foi chegando o artilheiro e antes que eu dissesse não
Me jogou contra o goleiro, dentro do gol, é campeão

9.7.10

Do carrossel ao bate-bate

Futebol é um esporte bretão que, com o tempo, vem se tornando brutão. Um parque de diversões que já teve carrossel e hoje tem bate-bate. Futebol de brutão, como tem demonstrado a maioria dos jogos da copa do mundo da África do Sul e amistosos anteriores, que vitimaram, entre outros, Drogba, Ballack e Beckham. Além de brutão, as primeiras rodadas da primeira fase da competição foram de partidas com poucos gols, pior média da história. Não fossem as vuvuzelas, com seus zumbidos de muriçoca, os jogos estariam de dar sono. Pareciam estar em super câmera lenta.

Desfez-se a profecia de Honda, que dizia: “E nesse dia, então, vai dar na décima nona edição: duas rodas nos pés conduzirão a um bom caminho o Japão”. A Itália mostrou um futebol que se aspetta con prego e a limitada Inglaterra confirmou que Gerrard é humano. Pela Argentina, Messi ficou na promessi. Di Maria vai com as outras, sozinho não fez Verón. Bastou pegar a Alemanha, pra ficar Higuaín a Palermo. Manda quem Podolski, obedece quem tem Burdisso.

Engana-se quem concluir que antipatizo com a Argentina. Não consigo incorporar essa rivalidade que a mídia e, às vezes, o governo de ambos os lados estimulam, fazendo uso, no caso brasileiro, de frases repetidas à exaustão, como: “ganhar é bom, ganhar da Argentina é melhor ainda”. O futebol imita a vida e essa competição é a mesma que, novamente mídia e governo, estimulam entre Rio e São Paulo, Pernambuco e Bahia, etc., ao longo dos anos e que carece de consistência. Ou seja, entre iguais, a rivalidade; dos “superiores”, o preconceito. Torci pela Argentina, que jogou bonito e  tinha uma equipe unida, que contava com o apoio emocional de um técnico merecedor dos holofotes que costuma atrair, pelo que já fez no futebol (opinião paulêmica, eu sei).

A Irlanda, ôps, França, francamente, mostrou a que não veio. Depois de conseguir a vaga para a copa de mão beijada e deixar a Irlanda de mãos abanando, saiu com uma mão na frente e outra atrás. Henry melhor quem Henry por último. Aliás, num jogo que se joga com os pés, meter os pés pelas mãos proporcionou alguns dos melhores momentos da competição. O brasileiro Luís Fabiano fez um gol de mão cheia, enquanto o atacante uruguaio Suárez foi até quebrar a barra e pegou a bola com a mão, num dos minutos mais empolgantes e inacreditáveis da história das copas.

Enquanto isso, seguimos iludidos pela ideia de caminho livre, sonhando ir mais longe e não vislumbramos um acidente de percurso em sentido contrário. Vans da Holanda aproximando-se da faixa e atropelando brasileiros, que não deram bola pros sinais. Van der Wiel, Van Bronckhorst, Van Bommel, Van Persie, Van Marwijk... Enquanto uns van e outros voltam, o Brasil nem Van, nem Schwein. Em vão, ainda se esperava que os Vans holandeses se rendessem à nossa vã filosofia de jogo. Qual o quê, como diria Chico Buarque (de Hollanda). Robben ou não, a Holanda é um timão.

Gostei dos semifinalistas. Pelo Uruguai, sinto a natural simpatia dos vizinhos e admiro a garra de seu grupo. A Alemanha jogou bem e, com a entrada de Özil, ficou em ponto de Ballack. Pelo Brasil, também torci, mas não queria ganhar a copa jogando daquele jeito e, eliminado, tratei de eleger a final que mais me agradaria.

Escolhi Espanha x Holanda, por vários motivos. Primeiro, porque desde 62, com o Brasil, havia uma exata alternância de títulos mundiais entre sulamericanos e europeus o que, repetindo 34/38 deles e 58/62 nossos, essa final quebraria (melhor ter parado por aqui, 2014 vem aí). Outros três motivos. Para fugir de mais um título tri-vial Brasil-Alemanha-Itália, pelos cem por cento de aproveitamento dos holandeses e por ser este um confronto que coloca frente a frente meus lados criança de ontem e de hoje, o que explico a seguir.

Gosto da atual seleção espanhola, por lembrar, de longe, o Brasil de outrora*, mas sobretudo por ser a preferida das crianças, que conhecem todos seus jogadores. Mas é com a Holanda campeã que eu acertaria as contas com o passado. As duas primeiras copas de que me lembro foram, justamente, aquelas das duas derrotas holandesas na final, ambas para as equipes anfitriãs. Como vivências de infância são marcantes e as duas copas correspondiam a cem por cento do que já tinha visto, passei a achar que toda seleção que jogasse em casa seria a campeã e desenvolvi certa resistência a essa ideia (na próxima passa). Ao mesmo tempo, com a equipe holandesa, carrossel da minha infância, criei uma ligação afetiva que, em ocasiões mais recentes, fui levado a reprimir, em nome do amor à pátria que atravessou seu caminho por duas vezes.



* O futebol (Chico Buarque)

Para Mané, Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro

Notas
Para estufar esse filó
Como eu sonhei

Se eu fosse o Rei
Para tirar efeito igual
Ao jogador
Qual
Compositor
Para aplicar uma firula exata
Que pintor
Para emplacar em que pinacoteca, nega
Pintura mais fundamental
Que um chute a gol
Com precisão
De flecha e folha seca

Parafusar algum joão
Na lateral
Não
Quando é fatal
Para avisar a finta enfim
Quando não é
Sim
No contrapé
Para avançar na vaga geometria
O corredor
Na paralela do impossível, minha nega
No sentimento diagonal
Do homem-gol
Rasgando o chão
E costurando a linha

Parábola do homem comum
Roçando o céu
Um
Senhor chapéu
Para delírio das gerais
No coliseu
Mas
Que rei sou eu
Para anular a natural catimba
Do cantor
Paralisando esta canção capenga, nega
Para captar o visual
De um chute a gol
E a emoção
Da idéia quando ginga

(Para Mané para Didi para Mané Mané para Didi para Mané para Didi para
Pagão para Pelé e Canhoteiro)

4.6.10

Bicampeões morais

O cronista esportivo Armando Nogueira disse, certa vez, sobre a copa de 70: “Choremos a alegria de uma campanha admirável em que o Brasil fez futebol de fantasia, fazendo amigos. Fazendo irmãos em todos os continentes.”. Suas palavras caberiam bem, também, em relação a outra copa que, para mim e creio que para quem mais não acompanhou nosso terceiro título, foi a melhor de todas: Espanha, 1982. Nas duas edições anteriores, após a conquista do tri, chegamos às semifinais, mas não vencemos, muito menos convencemos. Quem tinha menos de vinte anos à época, nunca tinha visto o Brasil ser campeão e a expectativa só aumentava...

Pela primeira vez, desde 1970, via-se o Brasil jogar um futebol de encher os olhos, em que os gols eram incríveis obras coletivas, que faziam jus ao termo futebol-arte, repetido à exaustão. Claro que havia problemas, divergências (Jô Soares tinha um personagem em seu programa humorístico que clamava, no orelhão, ao técnico Telê Santana: “Bota ponta, Telê!”, pelo fato de a seleção não contar com um ponta-direita) e momentos de mau futebol, como creio que havia, também, no time de 70. Como em toda competição, porém, as imagens que ficaram foram apenas as mais bonitas e marcantes, o que pode dar a impressão, aos que não assistiram aos jogos, de que era assim o tempo todo, o que não é verdade. Era assim quase o tempo todo.

Depois do título moral de 78, quando terminamos a competição invictos, sob o comando do capitão Coutinho, o futebol solto e alegre do time de 82 bateu bem com os ares de liberdade que se aproximavam. A copa da Espanha foi marcante em vários aspectos e logo se formou um clima positivo entre os torcedores, com direito até a músicas de sucesso, o que não ocorria desde o título de 70, com os “noventa milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção” (em 74 e 78, o “salve a seleção” teve outra conotação). Uma dessas canções, o samba Povo feliz (Voa canarinho) foi gravada por Júnior, um dos craques do time de 82, às vésperas da competição.

Mas foi outra canção que descreveu bem o sentimento da época, de um otimismo comedido, mas crescente. A esperança por um fio, materializada na figura do técnico Telê Santana. A canção citava o apelido carinhoso recebido por ele, quando ainda jogava, como ponta: Telê, um fio de esperança / De velho, moço e criança / Unindo os corações / E assim de novo do mundo seremos / Seremos os campeões*. A melodia lembrava uma marchinha ou um frevo, com toques de música espanhola. No ano seguinte, após mais esse fracasso do escrete verde e amarelo, outra canção retratou a frustração de todos os amantes de futebol da nação: “A gente joga bola e não consegue ganhar. Inútil! A gente somos inútil!” (Inútil, de Roger Moreira - Ultraje a Rigor).

Os meios de comunicação também contribuíram com sua arte, como a vinheta de abertura das transmissões dos jogos na rede Globo de televisão, uma espécie de previsão do Google Earth, em que uma vista aérea da Terra ia se aproximando do continente europeu, da Espanha, de Madrid, de um estádio de futebol, até chegar, no centro do gramado, a uma bola. Bem bolado (não resisti, como diria um amigo). Ao fundo, uma música que misturava as melodias de Pra frente Brasil e Touradas em Madri.

O primeiro embate do Brasil nessa copa, contra a União Soviética, foi um exemplo de que havia momentos sem graça, que, nesse jogo, duraram quase todo o primeiro tempo, que terminou com a vitória dos soviéticos por 1 x 0. O goleiro deles, Dasaev, era excelente, o melhor da copa e pegava tudo. Durante o intervalo, de tão calejados por experiências passadas recentes, ficamos com a impressão de que, mais uma vez, não chegaríamos lá. Tanto que nem levamos em conta o fato de que era uma estreia, a tensão era grande e o entrosamento pequeno. No final das contas, ganhamos por 2 x 1, com um pênalti não marcado a favor dos soviéticos, mas um futebol bem mais bonito, a partir do segundo tempo, algo que se repetiria daí pra frente.

Nessa edição, pela primeira vez, a competição contou com 24 seleções, divididas em seis grupos, dos quais se classificavam duas. Na primeira fase, além da URSS, a seleção brasileira enfrentou a Escócia (4 x 1) e a Nova Zelândia (4 x 0). Na segunda fase, as doze seleções restantes foram divididas em grupos de três. Um desses grupos poderia ter determinado os três primeiros colocados do campeonato, se a regra não determinasse a passagem apenas do líder, tampouco o destino os tivesse aproximado antes da hora. Foi nele que caímos e foi nele que caímos: Brasil, Argentina e Itália. A euforia foi grande e a confiança total, porém, após a vitória no primeiro confronto, contra a Argentina, por 3 x 1. Afinal de contas (não tem cabimento entregar o jogo no primeiro tempo), a squadra azzurra, adversária seguinte, tinha se classificado com três empates horrorosos.

Não assisti à copa de 50, mas creio que a certeza de uma vitória contra a Itália (ou do empate, resultado que já nos classificava), em 82, era quase tão grande quanto a da conquista do primeiro título, naquela copa. Da mesma forma, a frustração da derrota no Sarriá, em Barcelona, foi quase tão grande quanto a do episódio conhecido como Maracanaço, na edição realizada no Brasil. Como a convulsão de Ronaldo em 1998 e a meia de Roberto Carlos em 2006, Toninho Cerezo, injustamente, levou a culpa por não levarmos a copa, graças a um passe lateral, do meio do campo, que caiu nos pés de Paolo Rossi, atacante italiano (dos seis gols dele, que foi artilheiro da copa, metade foi marcada contra o Brasil e a outra metade após esse jogo, na semifinal e final).

Na verdade, o problema foi o mesmo de Hungria e Holanda, também citados como injustiçados, em copas anteriores: jogar bonito, sem pensar apenas em resultados. Perdemos por 3 x 2 e, mais do que o É tetra! É tetra!”, de Galvão Bueno, em 94, ecoa nos meus ouvidos, até hoje, o melancólico “Acabou o jogo! Acabou o jogo!”, de Luciano do Vale, à época locutor da rede Globo (Depois da copa, ele foi afastado da emissora e surgiram comentários de que o motivo teria sido o fato de mostrar-se muito emotivo nas transmissões, o que era, justamente, sua melhor virtude. Nem sabíamos o que viria pela frente...). Fomos bicampeões morais.

Foi nessa época, também, que os jogadores brasileiros passaram a ser mais cobiçados pelos times europeus, dando início ao fenômeno que ocorre até os dias de hoje. Depois da copa, vários titulares da nossa seleção – que sei de cor até hoje: Waldir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho e Júnior, Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, Serginho e Éder - foram embora, a maioria para a Itália (Falcão era o único “estrangeiro” do grupo e, antes da convocação para a copa, já atuava nesse país, onde recebeu o apelido de rei de Roma). Se, nos anos seguintes, o campeonato espanhol e, mais adiante, o inglês teriam maior destaque na mídia, o italiano era a bola da vez nos anos 80.

Bola pra frente. Hoje, somos pentacampeões e vem aí a copa da África, continente de um povo sofrido, mas alegre e que merece um pouco de diversão, um ópio saudável, do bem. Como diz o escritor Eduardo Galeano, somos todos africanos emigrados e a primeira copa nesse continente, no país de Nelson Mandela, tem, por isso, um sabor todo especial, como voltar pra casa. E como já fomos campeões em todos os continentes que já sediaram a competição (América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia), nada melhor do que também levar o título em casa. E repetir a dose, em 2014, novamente em casa.



* Sangue, swing e cintura (Moraes Moreira)

O rei aqui é Pelé
Na terra do futebol
Olé, é bola no pé
Redonda assim como o sol
Seja no Maracanã
Ou no gramado espanhol

Escola aqui é de samba
E bola é arte do povo
Sua alegria Deus manda
Nasce um Garrincha de novo
Quem sabe tem mais de um
Quebrando a casca do ovo

Tá lá, ta lá, tá lá
Tá no filó
Tá na filosofia
Quem sabe, sabe
O craque brasileiro
Tem sabedoria

Sangue, swing e cintura
Mistura de pé
Futebol e arte
Que em nenhuma outra parte
Do mundo há

Galinho de Quintino
Flamengo menino
Feito em forma de hino
Gol

Calcanhar de Sócrates
Gogó de cantor
Só craque, só craque, só craque, só craque
Só craque doutor

Telê, um fio de esperança
De velho, moço e criança
Unindo os corações

E assim de novo do mundo seremos
Seremos os campeões

20.5.10

O perfeito e o imperfeito do subjetivo

Palavras foram criadas para facilitar a comunicação. A linguagem, portanto, pressupõe esse fim. De nada adianta ignorar ou execrar o linguajar popular, restringir-se à norma culta e não se fazer entender pela maioria das pessoas, como um brasileiro exilado em sua própria pátria. Afinal, que língua é essa que pouquíssimos brasileiros falam? Podemos chamá-la de língua oficial? A discussões desse tipo é que se propõe a exposição Menas: o certo do errado, o errado do certo (com curadoria de Ataliba Castilho e Eduardo Calbucci), em cartaz no Museu da Língua Portuguesa (SP, até 27 de junho próximo), que nos apresenta interessantes frases, como: “Se alguém usou uma palavra, ela existe.” ou “Todos têm sotaque. Ainda bem.”.

Tais discussões casam bem com o pensamento de Marcos Bagno, profissional graduado em Letras pela UFPE, doutor em Línguística pela USP, professor da UnB e autor de mais de 30 livros, entre eles Preconceito linguístico. Impossível ficar indiferente a suas convicções. De posições firmes, o escritor, tradutor e linguista mineiro costuma afirmar, por exemplo, que o professor Pasquale e suas concepções rígidas de 'certo' e 'errado' estão na contramão da história e não são aceitas nos maiores centros de pesquisa linguística brasileiros.

Bagno defende a ideia de que o preconceito linguístico esconde um imenso preconceito social (a forma caricata e inventada com que a rede Globo mostra o sotaque nordestino em suas produções é um claro exemplo disso) e constitui “um disfarce amplamente aceito para que uma pessoa seja discriminada e excluída dos bens sociais aos quais teria direito pelo simples fato de ser um cidadão”.

Em recente e interessante entrevista ao Jornal do Commercio (PE), o linguista sugeriu: “as aulas de língua materna têm que se destinar, antes de mais nada, à inserção dos aprendizes na cultura letrada, e isso se faz por meio da leitura, da escrita, da leitura, da escrita e principalmente da leitura e da escrita”. E concluiu: “Enquanto nossos professores acharem que é preciso ensinar dígrafo, oxítonas, preposições, oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo, epiceno e outras coisas cabalísticas desse tipo, nossa educação linguística continuará catastrófica como já está”.

Quanto a conclusões simplistas e precipitadas de que estaria fazendo apologia ao vale-tudo na língua portuguesa, afirma, com propriedade: “Nenhum linguista sensato jamais disse que não é preciso ensinar aos alunos as formas privilegiadas, normatizadas de uso da língua. O que dizemos é que essas não são as únicas formas válidas de uso da língua e que é preciso abordar em sala de aula a multiplicidade de usos idiomáticos que existe na sociedade. No entanto, como nossa sociedade só consegue pensar em termos de sim/não, preto/branco, certo/errado, um discurso que contemple a variação, a noção de pluralidade de falas, não consegue penetrar no senso comum”.

O escritor reconhece o viés político por trás de muitas de suas afirmações, o que considera inevitável. Entre os polêmicos, mas/e interessantes comentários encontrados em seus livros, cito dois, a título de ilustração. No primeiro, ele compara a morfologia verbal das línguas inglesa e portuguesa, ao observar que se I lived, you lived, he lived, we lived, they lived é recebido sem estranhamento, o mesmo não ocorre com eu morava, tu morava, ele morava, nós morava, eles morava, recebidos com “o riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compaixão pelos 'infelizes caipiras' que 'não sabem falar direito', como se fossem menos inteligentes ou até menos humanos que os demais falantes”.

O segundo comentário trata da troca do L pelo R na pronúncia de certas palavras, ao que ele se refere como “um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão”. Segundo ele, “as pessoas que dizem Cráudia, grobo, chicrete, pranta estão apenas dando livre curso à mesma tendência fonética que fez, por exemplo, com que o latim fluxu desse em português frouxo, com um R bem nítido, que plaga desse praga, que sclavu desse escravo, que blandu desse brando, que flaccu desse fraco, que gluten desse grude, que o germânico blank desse em português branco (...)”.

Para enriquecer a discussão, entrei em contato com o professor, que, gentilmente, comentou os seguintes pontos. Sobre a questão (que já foi bem pior) da valorização quase exclusiva da ortografia e das normas gramaticais, em detrimento da clareza na comunicação, ele afirmou: “O apego à tradição gramatical e à ortografia é muito antigo em toda a civilização ocidental, data de pelo menos três séculos antes de Cristo, quando foi criada a disciplina gramatical. Ao se fixar um modelo único de 'língua certa', inspirado nos usos de uns poucos escritores consagrados do passado, todos os demais usos da língua foram jogados na lata do lixo do 'erro'. As pesquisas linguísticas contemporâneas mostram o absurdo que é essa atitude, que carece de qualquer fundamentação científica, sendo integralmente ideológica”.

Com relação ao novo acordo ortográfico, disse ser a favor “porque, antes de tudo, retira de Portugal uma arma ideológica que sempre esteve nas mãos dos setores chauvinistas da sociedade portuguesa: a ideia de que a língua é 'deles' e que por isso toda decisão sobre os destinos do idioma cabem prioritariamente a Lisboa”. E completa: “Ora, 90% dos falantes de português vivem no Brasil. Se todos os demais países de língua portuguesa abandonassem a língua e a trocassem por outra, ainda assim o português brasileiro seria a terceira língua mais falada no Ocidente (…). Com o Acordo, todos os usuários da língua vão ter uma maneira única de escrever e isso decerto facilitará muito a divulgação do idioma e a circulação dos bens impressos. É preciso lembrar, sempre, que não se trata de uma 'uniformização da língua', como muitas pessoas equivocadamente têm dito. (...) o que vai mudar exclusivamente é a maneira de escrever a língua”.

O que concluo disso tudo é que se por um lado tenho o “vício” de seguir os rigores das regras gramaticais e até me incomodo ao perceber certos erros de grafia, por outro (ou pelo mesmo) comporto-me como um dinossauro jurássico sempre que sigo, por exemplo, o costume enraizado de respeitar regras de próclise e ênclise, como a de não iniciar frases com pronomes oblíquos* (quanto à mesóclise, ser-me-ia demais respeitá-la).

Não sou nenhum especialista no assunto, mas, em suma, mesmo sem concordar “em gênero e número igual”, reconheço, “com os nervos da cor da pele”, a singularidade do raciocínio do exímio linguista, cujas ideias, ainda que em primeira análise pareçam radicais e exageradas, suscitam reflexões, como a percepção de que a língua não é criada no papel, por acadêmicos, mas resulta, isso sim, da linguagem falada.



* Pronominais  (Oswald de Andrade)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

6.5.10

Transações políticas e transições sexuais (e vice-versa)


Já se discutiu, ao longo do tempo, a relação entre política e sexo, entre companheiro de luta e companheiro de leito. Meu partido é um coração partido, já dizia Cazuza, nos relativamente despolitizados anos 80. Desde a transformadora década de 60, porém, política e sexo já andavam um tanto descompassados em nosso país. As práticas livres adquiridas com a revolução sexual, fruto das conquistas do movimento hippie, foram refreadas, do lado de baixo do Equador, pelas ditaduras instaladas por essas bandas. Na década de 80, por sua vez, a liberdade política conquistada com o fim das ditaduras, veio acompanhada da repressão sexual provocada pela descoberta do vírus da AIDS. Como resultado, no ramo da música, fatos curiosos ocorreram.

Sexo, política e rock’n roll. Nos anos 60, as canções de protesto combatiam o momento político e refletiam bem o clima de repúdio à situação vigente e a esperança num futuro melhor. Já as ingênuas canções da Jovem Guarda, e mesmo as da Bossa Nova, não refletiam tanto a revolução sexual em curso. Se bem que, pouco depois, os Secos & Molhados viriam a distorcer, sem discursos panfletários, apenas com seus requebros, a rígida coluna vertebral da dita ditadura, característica que, junto com o forte apelo visual e músicas como O vira, tornou o grupo bastante admirado, também, pelas crianças.

Por sua vez, a cena musical dos anos 80, que já não via mais como novidade as canções de duplo sentido ou de apelo sexual, presentes desde a década anterior com Genival Lacerda e Gretchen, entre outros, recebia reforços nesse estilo. Músicas como Serão extra (Eu fui dar mamãe / Fui dar mamãe / Fui dar um serão extra / Trabalhei com o patrão), do grupo Dr. Silvana & Cia., Amante profissional (Pra qualquer tipo de transação / Sem compromisso emocional / Só financeiro), do Herva Doce e Dentro do coração (Põe devagar), do Rádio Táxi, brincavam com o sexo de maneira despretensiosa, em contrapeso à dura realidade que despontava, evidenciada por Cazuza em Ideologia: Meu prazer agora é risco de vida.

No campo político, a década coincidiu com o período de abertura e o fim da censura aos meios de comunicação, esse último tendo gerado calorosas discussões entre o que podia e o que não podia ou quais seriam os limites do bom senso. Alheios a essa discussão e como crianças que ganham um brinquedo novo, os compositores daquela geração, mesmo sem o apuro e a sutileza de um Chico Buarque, queriam mais era experimentar ao máximo a novidade que surgia. Ao mesmo tempo, como todo principiante - pássaro novo longe do ninho -, não sabiam como lidar com a incipiente liberdade. Foi assim, então, que o público pôde presenciar, pelas primeiras vezes, o uso aberto do palavrão, em canções como Faroeste caboclo (Renato Russo).

O tema censura foi, inclusive, ironizado pelo irreverente Léo Jaime, em Solange, do disco Sessão da tarde (1985), versão para a música de Sting, So lonely: “Eu tinha tanto pra dizer / metade eu tive que esquecer / E quando eu tento escrever / Seu nome vem me interromper / ... / Solange, Solange, Solange / É o fim, Solange”. Solange Hernandes foi diretora da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal, setor extinto em 1988.

Renato Russo, que faria 50 anos em 2010, embora só tenha chegado ao sucesso após a leva de bandas surgidas na primeira metade da década de 80, que teve o Rock in Rio como marco divisório, foi um dos ícones da juventude da época e compôs duas canções que, junto com Brasil, de Cazuza, viraram hinos políticos daquela geração: Que país é este?Geração Coca-Cola*. E já que falamos de sexo e política, vale lembrar que outra canção dele, Eduardo e Mônica, recebeu uma análise (Mônica e Eduardo) um tanto política e sexualmente incorreta, na qual o autor inverte o senso comum de que Mônica é inteligente e engajada, enquanto Eduardo é alienado. Não obstante as ditas incorreções, o texto merece uma leitura mais leve, por ser passional – o que o torna mais engraçado - e criativo.

Faroeste caboclo, que se assemelha a uma espécie de ópera-rock, seja pela duração de cerca de nove minutos, seja por contar uma história – de desfecho trágico, por sinal - ou ainda pelas alternâncias melódicas que acompanham o sentimento do que vai sendo narrado, não deixa de lado o toque político, ainda que solto, no último verso: “E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília com o diabo ter / Ele queria era falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” (a extensa música, contrariando as lógicas de mercado, tocava bastante em rádio e era quase uma obrigação, para os jovens de então, saberem sua letra de cor e não salteado). A saga de João de Santo Cristo, narrada na canção, vai virar filme, em breve.

Mas foi a forma peculiar de narrar, por meio da música, conflitos existenciais próprios da juventude – os quais, numa geração dita perdida, pareciam ainda mais comuns -, que tornou tão idolatrado o cara que ousou cantar “e eu gosto de meninos e meninas”. Conflitos traduzidos em versos como “ainda estou confuso, só que agora é diferente”, “mudaram as estações e nada mudou”, “não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas”. E olhe que sexo verbal nem fazia seu estilo.



* Geração Coca-Cola (Renato Russo / Fê Lemos)

Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês
Nos empurraram com os enlatados
Dos U.S.A., de nove às seis

Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Depois de vinte anos na escola
Não é difícil aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser

Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola