29.10.09

Sem perder a ternura



Nos anos 70, quando vários países latino-americanos viviam em regime de ditadura, artistas dessas nações decidiram enfrentar seus problemas comuns cantando e compondo canções de protesto e, principalmente, unindo esforços e promovendo uma integração da região através da música. Seguindo o estilo agridoce da chilena Violeta Parra, Pablo Milanéz e Mercedes Sosa foram alguns desses artistas e, no Brasil, Chico Buarque e Milton Nascimento.

O Brasil, devido a fatores como língua diferente e maior extensão territorial, além de uma rica cultura, sempre tendeu a isolar-se dos países vizinhos e esses cantores foram dos poucos que conseguiram quebrar essa barreira. No momento em que lamentamos a perda de um dos ícones dessa música latino-americana e uma de suas mais belas vozes - a cantora argentina Mercedes Sosa -, louvar o papel social que eles desempenharam por meio do canto, sem perder a ternura, faz-se mais do que necessário.

A integração de seus cantos refletia a certeza de que, em se tratando de respeito aos direitos humanos, solidariedade, tolerância, luta contra preconceitos e injustiças sociais, desmancham-se fronteiras e não existem pátrias, apenas pessoas. Todos irmãos, em busca de liberdade, como cantou Mercedes em Venas abiertas* (Mario Schajris/Leo Sujatovich) ou em Los hermanos (Atahualpa Yupanqui): "Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / En el valle, la montaña, / En la pampa y en el mar / Cada cual con sus trabajos / Con sus sueños cada cual / Con la esperanza delante / Con los recuerdos detras / … / Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / Y una hermana muy hermosa / Que se llama libertad".

Numa época em que a liberdade se fez restrita, a juventude, por natureza já identificada com o tema, sentiu-se ainda mais atraída por ele. Os jovens reconheciam-se como peças importantes da história, nos versos de Coração de estudante (Milton Nascimento / Wagner Tiso): "Já podaram seus momentos / desviaram seu destino / seu sorriso de menino / quantas vezes se escondeu / mas renova-se a esperança / nova aurora a cada dia / e há que se cuidar do broto / pra que a vida nos dê flor e fruto" ou Me gustan los estudiantes (Violeta Parra): "Que vivan los estudiantes / jardín de nuestra alegría / son aves que no se asustan / de animal ni policía / Y no le asustan las balas / ni el ladrar de la jauría".

A voz de Mercedes Sosa soava como um lamento triste, mas não resignado e com uma força que parecia apenas encontrar explicação no título de um de seus discos - Traigo un pueblo en mi voz -, tirado de canção de seu repertório. A luta contra um imperialismo que favorecia governos de exceção em nosso continente fez crescer em seu povo um forte sentimento de latinidade e busca das raízes, o que ia ao encontro do trabalho da cantora, já desde o início comprometido com o canto popular e a música de raiz. As canções de protesto justificaram-se por esse mesmo contexto, mas a música de Mercedes Sosa foi mais além e também cantou o amor, em suas várias fases.

O amor em plenitude, como em Volver a los 17 (Violeta Parra), com Milton Nascimento: "Volver a los diecisiete después de vivir un siglo / Es como descifrar signos sin ser sabio competente / Volver a ser de repente tan frágil como un segundo / Volver a sentir profundo como un niño frente a dios / Eso es lo que siento yo en este instante fecundo / … / El amor es torbellino de pureza original / Hasta el feroz animal susurra su dulce trino / Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros / El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño / Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero".

Ou o amor sereno, como em Años (Pablo Milanéz), com Fagner: "El tiempo pasa / Nos vamos poniendo viejos / Yo el amor no lo reflejo como ayer / En cada conversación / Cada beso cada abrazo / Se impone siempre un pedazo / De razón / … / A todo dices que sí / A nada digo que no / Para poder construir / Esta tremenda armonía / Que pone viejo los corazones".

Se a arte une os povos, a música, dentre todas as suas formas, é a mais propícia a sentimentos de irmandade e união. Onde há música, há harmonia. Enquanto num evento esportivo a plateia divide-se, na música há um despertar conjunto de sentimentos que, no caso dessas linhas tortas da nossa história, mais uma vez, se não pôde mudar o rumo dos acontecimentos, certamente eternizou lembranças, celebrou conquistas, registrou momentos, abrandou dores, aliviou pesares e contribuiu para que a definitiva noite não se instalasse em Latinoamérica.

Obs.: Cancioneros.com é uma página sobre cantores da América Latina de várias gerações, da chilena Violeta Parra ao uruguaio Jorge Drexler, com informações como discografia e letras de músicas, bem como artigos e livros ligados ao tema. 

Os vídeos de algumas das canções citadas neste texto podem ser assistidos em: http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1328798-7085,00.html



* Venas abiertas (Mario Schajris-Leo Sujatovich)

America latina
Tiene que ir de la mano
Por un sendero distinto
Por un camino mas claro
Sus hijos ya no podremos
Olvidar nuestro pasado
Tenemos muchas heridas
Los latinoamericanos
  
Vivimos tantas pasiones
 Con el correr de los años
Somos de sangre caliente
Y de sueños postergados
Yo quiero que estemos juntos
Porque debemos cuidarnos
Quien nos lastima no sabe
Que somos todos hermanos
  
Y nadie va a quedarse a un lado
Nadie mirara al costado
Tiempo de vivir
Tiempo de vivir
Nada de morir
Vamos a buscar lo que deseamos
Nadie va a quedarse a un lado
Pronto ha de llegar
Tiempo de vivir
  
Nada nos regalaron
Hemos pagado muy caro
Quien se equivoca y no aprende
Vuelve a estar equivocado
Tenemos venas abiertas
Corazones castigados
Somos fervientemente
Latinoamericanos  
  
Y cuando vengan los dias
Que nosotros esperamos
Con todas las melodias
Haremos un solo canto
El cielo sera celeste
Los vientos habran cambiado
Y nacera un nuevo tiempo
Latinoamericano

2.10.09

Confidências mineiras


Enquanto no âmbito de nosso microuniverso - sobretudo nas grandes cidades - vivemos enclausurados, pouco interagindo com o próximo, no mundo globalizado rompemos barreiras e limitações de distância, num paradoxo que tem tornado o mundo cada vez mais uniforme e com menos peculiaridades regionais. Nesse cenário, recebemos mais influências de uma antena parabólica ou de um modem 3G do que de um vizinho de porta, um transeunte do bairro, um zé da praça ou um amigo da esquina.

As esquinas das cidades resgatam esse sentido de algo familiar, próximo, um ponto de encontro, ao mesmo tempo em que remetem a uma ideia de passagem, multiplicidade de caminhos, transitoriedade, alternativas, fim e começo, diferentes pontos de vista. Num lugar qualquer de Belo Horizonte, músicos criaram, na década de 70, o Clube da Esquina que, se não era um clube real, traduzia no nome todo esse espírito, bastante apropriado. O encontro desses jovens músicos resultou em dois discos, Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978).

Nesses trabalhos coletivos, Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes revezaram-se nos vocais e instrumentos, contando com a parceria de Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges na maioria das composições, com um excelente time de instrumentistas, entre eles Toninho Horta e, ainda, com arranjos de Wagner Tiso e Eumir Deodato.

As canções tinham forte apelo instrumental, marca registrada do grupo. Algumas tinham melodias iguais para letras diferentes, outras eram puramente instrumentais e duas delas - Cais e Um gosto de sol* – possuíam uma mesma passagem melódica, bem conhecida. Era como se a mensagem estivesse mais no som do que nas letras e aquele, disposto em linhas melódicas bem trabalhadas e não triviais, precisasse ser mais enfatizado.

De fato, as letras suscitavam reflexões (Maria, Maria e Nada será como antes são bons exemplos), mas, em boa parte, não continham mensagens lineares, diretas ou claras, o que, de certa forma, aproximava-os, ainda que por estilos bem diferentes, de seus contemporâneos Secos & Molhados, Raul Seixas e Novos Baianos. Ivan Vilela, músico e professor da USP, em artigo publicado no museu virtual Clube da Esquina, observa que, nas letras das canções, "pouco se encontra da estrutura de romance ou de narrativas, histórias ou situações das quais se pode tirar alguma moral ou mensagem".

A ideia de transitoriedade revela-se, nas canções, em temas como dia e noite, manhã e tarde, lua e estrela, sol e chuva, estrada e terra, vento e poeira, mar e rio, céu e chão. Luzes, paisagens, sonhos e cidades - saídas e bandeiras, sonho virando terra, pedra virando corpo, um girassol da cor do seu cabelo. Outra característica é a celebração ao amor e à amizade.

Crescia, à época, a ligação entre músicos da América Latina, e Milton foi personagem fundamental nesse processo. No primeiro Clube da Esquina, a canção Os povos, dele e de Márcio Borges, é dedicada à juventude consciente da Venezuela. No segundo disco, Chico Buarque divide os vocais com Milton, em uma adaptação sua a Canción por la unidad latinoamericana, de Pablo Milanés. O coração americano é exaltado, também, em San Vicente (Milton Nascimento / Fernando Brant). Havia, também, a influência dos Beatles.

Como os sonhos não envelhecem, vieram discípulos como Flávio Venturini (que também fez parte do Clube da Esquina 2) e Samuel Rosa (Skank), que, em parceria com Lô Borges, compôs, recentemente, a bela Dois Rios. Em 1996, Márcio Borges, um dos sócios do clube, escreveu o livro "Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina". Histórias de um grupo de jovens que fez a música brasileira renascer e dobrar a esquina, tendo à frente um cara que iniciou a trajetória com travessia, tem na voz um instrumento e no nome a palavra nascimento.

"Se Deus cantasse, cantaria com a voz de Milton Nascimento" (Elis Regina)



* Um gosto de sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)

Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pêra se esquece
Dormindo numa fruteira
Como adormece o rio
Sonhando na carne da pêra
O sol na sombra se esquece
Dormindo numa cadeira

Alguém sorriu de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou o riso que eu tinha
E esqueci entre os dentes
Como uma pêra se esquece
Sonhando numa fruteira