1.5.09

Caminhando e cantando - os dias eram assim

Quando se fala em música de protesto, Geraldo Vandré é o primeiro nome que nos vem à cabeça. Vandré tinha convicção de que a arte constituía poderosa arma contra o regime militar e, por conta disso, não via com bons olhos aquela que não se prestasse a tal fim. Desaprovava o uso de guitarras da Jovem Guarda e do Tropicalismo – influência externa, em geral associada ao imperialismo estadunidense -, bem como os temas mais suaves da Bossa Nova, também pouco engajados politicamente.

O compositor paraibano teve curta carreira artística, talvez desiludido com o caminho que traçava o país, a perseguição que sofria por lhe ser contrário e as dificuldades com a censura. Lançou apenas cinco discos, sendo o último em 1973. Tempo suficiente, porém, para compor belas canções, como Disparada e Canção da despedida. Sua canção mais conhecida, Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores), tornou-se hino de resistência à ditadura. Era fascinante escutar pessoas cantando, em rodas de violão ou reuniões informais, uma música que não tocava em rádio e televisão, nem estava disponível em disco, o que, naqueles tempos, apenas contribuía para torná-la especial.

Da desilusão de Roda-Viva (“tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”) à esperança de Vai Passar (“vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade”), Chico Buarque foi o compositor que melhor traduziu o sentimento do povo em relação ao rumo político que o país tomava. No início dos anos 70, período crítico da ditadura militar, mandou um recado mais do que direto contra o governo e a repressão em Apesar de você. Quando a censura deu conta do recado, a canção já havia sido lançada em compacto simples que foi, então, recolhido.

O disco Calabar (1973), trilha sonora para a peça de mesmo nome, com composições de Chico Buarque e Ruy Guerra, teve que mudar a capa e o título, que passou a ser Chico canta. Fora isso, trechos de música foram alterados, palavras substituídas ou suprimidas. No jogo de palavras em que era mestre, Chico usou as sílabas de Calabar como mote de uma das canções do disco: Cala a boca Bárbara. Outras duas – Ana de Amsterdam e Vence na vida quem diz sim - apenas foram liberadas em versões instrumentais. Com subtítulo “O elogio da traição”, a peça fazia uma analogia entre Calabar – personagem da história do Brasil visto de forma controversa como traidor - e os opositores do regime militar.

Com o nome cada vez mais visado, Chico gravou, no ano seguinte, disco com músicas de outros compositores, com um sugestivo título: Sinal fechado. Para escapar da censura, passou a adotar, até ser descoberto alguns meses depois, o pseudônimo Julinho de Adelaide, com o qual assinou Milagre brasileiro, Acorda amor (“depois de um ano eu não vindo, ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”) e Jorge Maravilha (“você não gosta de mim, mas sua filha gosta”).

Tim Maia disse, certa vez, que com uma música de Ivan Lins faria umas dez, em exaltação ao estilo apurado das composições do colega. Compositor mais comumente associado a canções românticas, Ivan Lins, com o parceiro e letrista Vítor Martins, também foi esmerado em canções políticas, como A noite (“a noite tem deixado seus rancores gravados...”), Cartomante (“nos dias de hoje não lhes dê motivo, porque na verdade eu te quero vivo”) e Aos nossos filhos*, as duas últimas com interpretações notáveis de Elis Regina. Ironicamente, um de seus primeiros sucessos foi O amor é o meu país, de seu primeiro LP (1970), considerada alienada para um período tão conturbado.

Pra não dizer que não falei das flores, com a abertura política, canções outrora censuradas puderam, enfim, ser gravadas, como a citada música de Vandré, que fez parte de um disco ao vivo da cantora Simone, gravado no último dia do ano de 1979, no qual ela fazia votos de “que as pessoas menos afortunadas do que nós tenham um pouquinho de estabilidade na vida”. Um ano antes, num LP a que ele se refere como o “disco das samambaias”, por conta da capa, Chico Buarque não perdeu tempo e gravou logo três: Apesar de você, Cálice e Tanto mar.

A partir daí, surgiu uma leva de canções mais otimistas. Prenunciava-se “um novo tempo, apesar dos perigos”, com mensagens como “desesperar jamais, aprendemos muito nesses anos” (Ivan Lins e Vítor Martins). Como já disse Tom Zé, a felicidade é cheia de hino. Vieram, então, os hinos da anistia (O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc; Tô voltando, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro), das diretas (Pelas tabelas, de Chico Buarque), da Nova República (Coração de estudante, de Milton Nascimento e Wagner Tiso), culminando com o hino da redemocratização (Vai passar, de Chico Buarque e Francis Hime).

A arte, mais especificamente a música, sempre foi lenitivo a momentos difíceis. Quem canta seus males espanta, diz um dito popular. Cantando eu mando a tristeza embora, responde um cantor popular. E assim, virando a página, tocando em frente, caminhando, cantando e seguindo a canção, escrevemos nossa história em notas musicais.



* Aos nossos filhos (Ivan Lins / Vítor Martins)

Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

E quando lavarem a mágoa
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

Nenhum comentário: