19.12.09

Temporal

No meu tempo, tudo tinha seu tempo
Mais cedo ou mais tarde
Hoje, meu futuro se apresenta
Já era. E agora?
Tenho uma morte inteira pela frente

Ontem, serei feliz, ao menos um segundo
Quando? Faz tempo
Depois de amanhã já é noite
Luto contra o tempo
Antes que seja tarde
Horas a fio, dia após dia, amiúde, sempre
Não perco tempo. É urgente

Hoje, porém, eu me rendo e peço
Antes tarde do que nunca
Por um momento esquecer quanto tempo me resta
E cada instante, enfim, viver eternamente

(Temporal - Paulo Bap)


Tempo de reflexão. O novo milênio – futurista, cinematográfico, tão imaginado e esperado, decantado em músicas, citado em livros, tema de filmes - chegou e, num piscar de olhos, já se foi sua primeira década.

Tempo de relógio. O tempo é assim, absolutamente relativo. Devagar, quando o queremos rápido. Veloz, quando o queremos lento. Tempo integral, tempo instantâneo. Tão rápido que a unidade de tempo é segundo e não primeiro. Primeiro, o segundo, por fim, o infinito. Mas o que houve antes do primeiro segundo? Indefinitivamente, não sei.

Tempo de remediar. O tempo é remédio pra todos os males. Bem ou mal, tudo passa, é só dar tempo ao tempo. Certa pessoa, sempre que via alguém triste, costumava dizer: “não se preocupe, isso é só uma frase”, como quem diz “isso passa”. Queria dizer fase, mas, ao confundir, acertava (de fato, isso é só uma frase). O curioso é que se usasse o termo período, em vez de frase, o período – ou frase - manteria os dois sentidos – temporal e gramatical - e o equívoco passaria despercebido: “não se preocupe, isso é só um período”. Seja como for, uma fase, como uma frase, termina no ponto que a separa da seguinte.

Tempo de contradição. O tempo não para, é um paradoxo. O tempo não é temporário, mas passa. Pode ser passatempo, mas também contratempo. É passageiro, mas conduz. Expresso 2222 – “pra 2001 e 2 e tempo afora, até onde essa estrada do tempo vai dar”. Pra onde vamos e o que fazemos, nesse meio tempo entre o “há pouco” e o “a pouco”, depende de nós. Ainda está em tempo, sempre é tempo. Tempo é dinheiro, que se gasta, mas não se empresta. Tempo real. Não se compra nem se vende. Há tempo pra tudo, há tempo pra todos.

Tempo de mudar. O tempo de luta por igualdade deve ser, também, tempo de solidariedade. Todos iguais, mas não indiferentes. Individualidade não é individualismo. Ponha-se no seu lugar: ponha-se no meu lugar. O próximo sou eu, você é o próximo. Não perco meu tempo, eu acho. “Tempo rei, oh, tempo rei, transformai as velhas formas do viver”.

PS 1 - Citações musicais: Expresso 2222 e Tempo rei (Gilberto Gil)

PS 2 - Tempo de rir. Rir é contagiante, quer ver? (Destaque do portal Terra, como um dos melhores vídeos da década)



Oração ao Tempo (Caetano Veloso)

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo Tempo Tempo Tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo Tempo Tempo Tempo

O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Apenas contigo e migo
Tempo Tempo Tempo Tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo Tempo Tempo Tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo Tempo Tempo Tempo

29.11.09

Os noventistas (ou os últimos poetas musicais do século XX)

Depois de duas décadas de ouro para a música brasileira, período em que surgiu com força a chamada MPB, o pop-rock deu as cartas nos anos 80. Trouxe talentos e méritos, mas também coisas de menor qualidade, como tudo que vem em excesso. Conquistou a preferência do público e uma quase exclusividade dos meios de comunicação, necessariamente nessa desordem, o que diminuiu bastante o espaço para outras boas novidades. Tudo isso, aliado ao peso de suceder a uma penca de cantores e compositores magníficos, fez com que uma certa geração pós-ditadura da MPB demorasse mais a pôr as manguinhas de fora e mostrasse sua cara apenas na década seguinte.

Do meu lado, em parte por decorrência natural do amadurecimento (vá lá, da idade), em parte por ter tido o privilégio de acompanhar, em tempo real, grandes lançamentos da nossa música, de tão preenchido, passei a fechar mais os tímpanos para novidades e, em consequência, demorar mais a assimilá-las. Com atenções merecidamente voltadas a esse museu de grandes novidades, do qual os grandes compositores da primeira geração da MPB eram peças principais, não foi de imediato que passei a apreciar novos talentos que surgiam.

Falo da turma de Cássia Eller, Moska, Lenine, Chico César, Zeca Baleiro, Zélia Duncan e, não tão integrados a estes, mas contemporâneos e também desenvolvendo trabalhos de qualidade, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto. Alguns deles foram bastante ligados à turma dos anos 80 e, de certa forma, supriram lacuna deixada por Cazuza e Renato Russo. Como Cássia Eller, que gravou várias canções de Nando Reis (ex-Titãs) e Cazuza – é dele e Frejat sua interpretação de maior sucesso, Malandragem – e Moska, que à época fez parte do grupo Inimigos do Rei. Marisa Monte, que tem parcerias com Nando Reis e Arnaldo Antunes, mereceu destaque imediato em parte por também – e tão bem - romper a barreira entre MPB e pop-rock, entre Rosa de Pixinguinha e Comida dos Titãs.

Uma característica frequente nas composições desses noventistas, sobretudo de sua ala masculina, é o uso criativo do jogo de palavras, do qual são exemplos os seguintes versos: “Ah, Caicó arcaico / Em meu peito catolaico / Tudo é descrença e fé”, “Respeitem meus cabelos, brancos” (atenção para a vírgula), “Lágrimas de diamantes / à noite, lágrimas de diamantes / de dia lágrimas, à noite amantes”, “Gastei minha sandália havaiana / andando atrás dessa baiana / mas a baiana me vaiou / … / eu disse que vim do Cabo Verde / mas ela me achou imaturo / … / mand'ela vir, mand'ela aqui, mand'ela cá”, “Minha diva, meu divã / Minha manha, meu amanhã / Meu lá, minha lã / Minha paga, minha pagã / Meu velar, meu avelã”*.

Vozes femininas costumam falar de sentimentos com propriedade e, na geração que aflorou nos anos 90, elas vieram de mulheres que eram, também, compositoras, as quais conquistaram importante espaço ao colocarem em versos tanta sensibilidade: “Meu coração toda vez que te vê / quer gritar, se arriscar, sair cantando / me delatando pra todo mundo / pensa que está fora do alcance / ... / mas fecho os olhos então / e ele fica mudo / meu escuro é meu escudo / e silencioso é meu coração”, “Entre por essa porta agora / e diga que me adora / você tem meia hora / pra mudar a minha vida”, “Deixa eu dizer que te amo / deixa eu pensar em você / isso me acalma / me acolhe a alma / isso me ajuda a viver”**.

Entre Cássia Eller, Zélia Duncan, Adriana Calcanhotto e Marisa Monte, apenas a primeira não compunha com assiduidade. Claro que as gerações anteriores, de época tão rica e fértil para a nossa música, já traziam um toque feminino nas composições (Rita Lee, Ângela Rô Rô, Marina Lima, Joyce, entre outras, para citar apenas as de duplo ofício), mas grandes cantoras, como Maria Bethânia, Elis Regina, Gal Costa, Elba Ramalho e Zizi Possi, eram, sobretudo, intérpretes.

Esta fusão de tendências das duas décadas anteriores representa bem o amadurecimento de uma geração que, nascida ou crescida durante a ditadura militar, desestimulada a pensar, expressar-se, a participar de movimentos e discussões por tantos anos, viu-se perdida quando, enfim, conquistou a liberdade, numa década que começou quando um sonho acabou – a morte de John Lennon - e acabou quando outro começou – a queda do muro de Berlim. Geração perdida e década perdida, por sinal, são designações recorrentes quando se fala dessa época, mas, parafraseando Gilberto Gil, uma semente de ilusão tem que morrer pra germinar. Estamos no tempo de colher os frutos.


* Trechos das canções: A prosa impúrpura do Caicó, Respeitem meus cabelos, brancos (Chico César), Lágrimas de diamantes (Moska), Mand'ela (Chico César e Zeca Baleiro) e Meu amanhã (Lenine).

** Trechos das canções: Toda vez (Zélia Duncan e Christian Oyens), Vambora (Adriana Calcanhotto) e Amor I love you (Marisa Monte e Carlinhos Brown)


Mais pérolas em vídeo: Zélia Duncan - Me revelar (Zélia Duncan e Christian Oyens), Chico César - À primeira vista (Chico César), Moska - Pensando em você (Moska), Adriana Calcanhotto - Mentiras (Adriana Calcanhotto), Marisa Monte - Paradeiro (Marisa Monte e Arnaldo Antunes), Cássia Eller - Por enquanto (Renato Russo), Zeca Baleiro - Quase nada (Zeca Baleiro e Alice Ruiz) e Lenine - Paciência (Lenine e Dudu Falcão).  

29.10.09

Sem perder a ternura



Nos anos 70, quando vários países latino-americanos viviam em regime de ditadura, artistas dessas nações decidiram enfrentar seus problemas comuns cantando e compondo canções de protesto e, principalmente, unindo esforços e promovendo uma integração da região através da música. Seguindo o estilo agridoce da chilena Violeta Parra, Pablo Milanéz e Mercedes Sosa foram alguns desses artistas e, no Brasil, Chico Buarque e Milton Nascimento.

O Brasil, devido a fatores como língua diferente e maior extensão territorial, além de uma rica cultura, sempre tendeu a isolar-se dos países vizinhos e esses cantores foram dos poucos que conseguiram quebrar essa barreira. No momento em que lamentamos a perda de um dos ícones dessa música latino-americana e uma de suas mais belas vozes - a cantora argentina Mercedes Sosa -, louvar o papel social que eles desempenharam por meio do canto, sem perder a ternura, faz-se mais do que necessário.

A integração de seus cantos refletia a certeza de que, em se tratando de respeito aos direitos humanos, solidariedade, tolerância, luta contra preconceitos e injustiças sociais, desmancham-se fronteiras e não existem pátrias, apenas pessoas. Todos irmãos, em busca de liberdade, como cantou Mercedes em Venas abiertas* (Mario Schajris/Leo Sujatovich) ou em Los hermanos (Atahualpa Yupanqui): "Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / En el valle, la montaña, / En la pampa y en el mar / Cada cual con sus trabajos / Con sus sueños cada cual / Con la esperanza delante / Con los recuerdos detras / … / Yo tengo tantos hermanos / Que no los puedo contar / Y una hermana muy hermosa / Que se llama libertad".

Numa época em que a liberdade se fez restrita, a juventude, por natureza já identificada com o tema, sentiu-se ainda mais atraída por ele. Os jovens reconheciam-se como peças importantes da história, nos versos de Coração de estudante (Milton Nascimento / Wagner Tiso): "Já podaram seus momentos / desviaram seu destino / seu sorriso de menino / quantas vezes se escondeu / mas renova-se a esperança / nova aurora a cada dia / e há que se cuidar do broto / pra que a vida nos dê flor e fruto" ou Me gustan los estudiantes (Violeta Parra): "Que vivan los estudiantes / jardín de nuestra alegría / son aves que no se asustan / de animal ni policía / Y no le asustan las balas / ni el ladrar de la jauría".

A voz de Mercedes Sosa soava como um lamento triste, mas não resignado e com uma força que parecia apenas encontrar explicação no título de um de seus discos - Traigo un pueblo en mi voz -, tirado de canção de seu repertório. A luta contra um imperialismo que favorecia governos de exceção em nosso continente fez crescer em seu povo um forte sentimento de latinidade e busca das raízes, o que ia ao encontro do trabalho da cantora, já desde o início comprometido com o canto popular e a música de raiz. As canções de protesto justificaram-se por esse mesmo contexto, mas a música de Mercedes Sosa foi mais além e também cantou o amor, em suas várias fases.

O amor em plenitude, como em Volver a los 17 (Violeta Parra), com Milton Nascimento: "Volver a los diecisiete después de vivir un siglo / Es como descifrar signos sin ser sabio competente / Volver a ser de repente tan frágil como un segundo / Volver a sentir profundo como un niño frente a dios / Eso es lo que siento yo en este instante fecundo / … / El amor es torbellino de pureza original / Hasta el feroz animal susurra su dulce trino / Detiene a los peregrinos, libera a los prisioneros / El amor con sus esmeros al viejo lo vuelve niño / Y al malo sólo el cariño lo vuelve puro y sincero".

Ou o amor sereno, como em Años (Pablo Milanéz), com Fagner: "El tiempo pasa / Nos vamos poniendo viejos / Yo el amor no lo reflejo como ayer / En cada conversación / Cada beso cada abrazo / Se impone siempre un pedazo / De razón / … / A todo dices que sí / A nada digo que no / Para poder construir / Esta tremenda armonía / Que pone viejo los corazones".

Se a arte une os povos, a música, dentre todas as suas formas, é a mais propícia a sentimentos de irmandade e união. Onde há música, há harmonia. Enquanto num evento esportivo a plateia divide-se, na música há um despertar conjunto de sentimentos que, no caso dessas linhas tortas da nossa história, mais uma vez, se não pôde mudar o rumo dos acontecimentos, certamente eternizou lembranças, celebrou conquistas, registrou momentos, abrandou dores, aliviou pesares e contribuiu para que a definitiva noite não se instalasse em Latinoamérica.

Obs.: Cancioneros.com é uma página sobre cantores da América Latina de várias gerações, da chilena Violeta Parra ao uruguaio Jorge Drexler, com informações como discografia e letras de músicas, bem como artigos e livros ligados ao tema. 

Os vídeos de algumas das canções citadas neste texto podem ser assistidos em: http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1328798-7085,00.html



* Venas abiertas (Mario Schajris-Leo Sujatovich)

America latina
Tiene que ir de la mano
Por un sendero distinto
Por un camino mas claro
Sus hijos ya no podremos
Olvidar nuestro pasado
Tenemos muchas heridas
Los latinoamericanos
  
Vivimos tantas pasiones
 Con el correr de los años
Somos de sangre caliente
Y de sueños postergados
Yo quiero que estemos juntos
Porque debemos cuidarnos
Quien nos lastima no sabe
Que somos todos hermanos
  
Y nadie va a quedarse a un lado
Nadie mirara al costado
Tiempo de vivir
Tiempo de vivir
Nada de morir
Vamos a buscar lo que deseamos
Nadie va a quedarse a un lado
Pronto ha de llegar
Tiempo de vivir
  
Nada nos regalaron
Hemos pagado muy caro
Quien se equivoca y no aprende
Vuelve a estar equivocado
Tenemos venas abiertas
Corazones castigados
Somos fervientemente
Latinoamericanos  
  
Y cuando vengan los dias
Que nosotros esperamos
Con todas las melodias
Haremos un solo canto
El cielo sera celeste
Los vientos habran cambiado
Y nacera un nuevo tiempo
Latinoamericano

2.10.09

Confidências mineiras


Enquanto no âmbito de nosso microuniverso - sobretudo nas grandes cidades - vivemos enclausurados, pouco interagindo com o próximo, no mundo globalizado rompemos barreiras e limitações de distância, num paradoxo que tem tornado o mundo cada vez mais uniforme e com menos peculiaridades regionais. Nesse cenário, recebemos mais influências de uma antena parabólica ou de um modem 3G do que de um vizinho de porta, um transeunte do bairro, um zé da praça ou um amigo da esquina.

As esquinas das cidades resgatam esse sentido de algo familiar, próximo, um ponto de encontro, ao mesmo tempo em que remetem a uma ideia de passagem, multiplicidade de caminhos, transitoriedade, alternativas, fim e começo, diferentes pontos de vista. Num lugar qualquer de Belo Horizonte, músicos criaram, na década de 70, o Clube da Esquina que, se não era um clube real, traduzia no nome todo esse espírito, bastante apropriado. O encontro desses jovens músicos resultou em dois discos, Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978).

Nesses trabalhos coletivos, Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes revezaram-se nos vocais e instrumentos, contando com a parceria de Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges na maioria das composições, com um excelente time de instrumentistas, entre eles Toninho Horta e, ainda, com arranjos de Wagner Tiso e Eumir Deodato.

As canções tinham forte apelo instrumental, marca registrada do grupo. Algumas tinham melodias iguais para letras diferentes, outras eram puramente instrumentais e duas delas - Cais e Um gosto de sol* – possuíam uma mesma passagem melódica, bem conhecida. Era como se a mensagem estivesse mais no som do que nas letras e aquele, disposto em linhas melódicas bem trabalhadas e não triviais, precisasse ser mais enfatizado.

De fato, as letras suscitavam reflexões (Maria, Maria e Nada será como antes são bons exemplos), mas, em boa parte, não continham mensagens lineares, diretas ou claras, o que, de certa forma, aproximava-os, ainda que por estilos bem diferentes, de seus contemporâneos Secos & Molhados, Raul Seixas e Novos Baianos. Ivan Vilela, músico e professor da USP, em artigo publicado no museu virtual Clube da Esquina, observa que, nas letras das canções, "pouco se encontra da estrutura de romance ou de narrativas, histórias ou situações das quais se pode tirar alguma moral ou mensagem".

A ideia de transitoriedade revela-se, nas canções, em temas como dia e noite, manhã e tarde, lua e estrela, sol e chuva, estrada e terra, vento e poeira, mar e rio, céu e chão. Luzes, paisagens, sonhos e cidades - saídas e bandeiras, sonho virando terra, pedra virando corpo, um girassol da cor do seu cabelo. Outra característica é a celebração ao amor e à amizade.

Crescia, à época, a ligação entre músicos da América Latina, e Milton foi personagem fundamental nesse processo. No primeiro Clube da Esquina, a canção Os povos, dele e de Márcio Borges, é dedicada à juventude consciente da Venezuela. No segundo disco, Chico Buarque divide os vocais com Milton, em uma adaptação sua a Canción por la unidad latinoamericana, de Pablo Milanés. O coração americano é exaltado, também, em San Vicente (Milton Nascimento / Fernando Brant). Havia, também, a influência dos Beatles.

Como os sonhos não envelhecem, vieram discípulos como Flávio Venturini (que também fez parte do Clube da Esquina 2) e Samuel Rosa (Skank), que, em parceria com Lô Borges, compôs, recentemente, a bela Dois Rios. Em 1996, Márcio Borges, um dos sócios do clube, escreveu o livro "Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina". Histórias de um grupo de jovens que fez a música brasileira renascer e dobrar a esquina, tendo à frente um cara que iniciou a trajetória com travessia, tem na voz um instrumento e no nome a palavra nascimento.

"Se Deus cantasse, cantaria com a voz de Milton Nascimento" (Elis Regina)



* Um gosto de sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)

Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pêra se esquece
Dormindo numa fruteira
Como adormece o rio
Sonhando na carne da pêra
O sol na sombra se esquece
Dormindo numa cadeira

Alguém sorriu de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou o riso que eu tinha
E esqueci entre os dentes
Como uma pêra se esquece
Sonhando numa fruteira

5.9.09

Baião de dois

Salve o compositor popular. Se aquele que se presta a esta ocupação e anima a festa imodesta da nossa música, como exaltado por Caetano Veloso, sempre foi um espécime pouco conhecido, com o advento do MP3 e a consequente desmaterialização do disco, tornou-se quase uma incógnita. A equação fica mais fácil quando as parcerias são constantes ou frequentes, como João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins e Vítor Martins, Milton Nascimento e Fernando Brandt, Roberto e Erasmo Carlos, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Ainda assim, o destaque é maior para os também cantores.

Informações sobre esses ilustres desconhecidos - ou menos conhecidos -, os compositores, são sempre interessantes e bem-vindas e é a isso que se propõe o documentário O homem que engarrafava nuvens, de Lírio Ferreira (Baile perfumado, Cartola - música para os olhos), sobre o compositor, deputado federal (!) e advogado cearense Humberto Teixeira, parceiro de Gonzagão. A produção é da atriz carioca Denise Dummont, conhecida de quem já passou dos 30 anos, por já ter feito parte do elenco da Rede Globo de Televisão, em tempos idos.

O título poético vem de depoimento de Teixeira, em que ele dizia gostar de ficar em casa, engarrafando nuvens. O filme foi lançado em meio às homenagens em memória dos 30 anos – completados em 2009 -, da morte do compositor, conhecido como o doutor do baião, referência ao estilo que criou junto com Luiz Gonzaga, o rei do baião. Este, por sua vez, também vem recebendo homenagens, em memória dos 20 anos de sua morte. A dupla compôs grandes clássicos do nosso cancioneiro, músicas belíssimas como Assum preto*, Qui nem jiló, Estrada de Canindé, Juazeiro e Asa branca, o hino do nordeste independente imaginado pelos compositores Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova.

Ainda que tenha como motivação maior e principal mérito mostrar a importância do doutor do baião para a música brasileira, o filme aborda, também, aspectos pessoais de sua vida, centrados no relacionamento entre ele e Denise Dummont, pai e filha. Quando se separou de Teixeira, a mãe de Denise foi morar nos Estados Unidos e a atriz ficou morando com o pai que, contrário a sua carreira artística, não permitiu que ela usasse seu sobrenome. Diferenças de ideias e valores provocaram um certo distanciamento entre eles, superado ao longo do tempo de convivência. Além do estigma do nordestino, de ter costumes conservadores, o pai levava para casa, também, o estigma do compositor, de ser sujeito pouco conhecido.

Relações humanas conflituosas costumam render bons enredos de filmes, sejam eles de ficção ou baseados em fatos reais. Expõem-se os dramas e, ao apagar das luzes, o público, paciente, transforma sessão de cinema em sessão de análise. Quando uma das partes envolvidas nesse conflito participa da criação da obra, os efeitos terapêuticos especiais transpõem a tela e a projeção cinematográfica serve de expurgo às projeções psicanalíticas de seus próprios criadores, em suas relações. Quando tais relações envolvem, do outro lado, artistas ou pessoas públicas em geral, aumentam o interesse e a curiosidade. Exemplo recente foi Maysa – Quando fala o coração, série televisual dirigida por Jayme Monjardim, filho da cantora.


Para o público, O homem que engarrafava nuvens também é uma terapia no aspecto musical. Uma análise poético-musical coletiva, com apresentação de canções e depoimentos que ressaltam a importância do baião para a música popular brasileira, confirmando a versão de Gilberto Gil, de que ele vem de baixo do barro do chão, e mostrando onde chegou, do outro lado do mundo, graças a Gonzaga e Teixeira. Gil, como tantos outros, é admirador e seguidor do trabalho da dupla, responsável, segundo ele, por uma revolução em sua vida: “Quando ouvi essas coisas fiquei louco, estou louco até hoje”. “São as grandes famílias reais musicais brasileiras, duas dinastias, a do samba e a do baião”, afirma ele, também, em depoimento ao filme.

Caetano, outro admirador da dupla, homenageou Humberto Teixeira, o saudoso poeta, em sua canção Terra, do disco Muito, de 1978: “mando um abraço pra ti, pequenina, como se eu fosse o saudoso poeta e fosses a Paraíba”, em que faz referência ao trecho “hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina”, da canção Paraíba, dos criadores do baião.

Tocando fundo e descrevendo tão bem a alma do brasileiro nordestino, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira sempre fizeram valer a máxima, criada por eles, de que “se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois”. E que dois. Ou, como diria uma saudosa tia, que ambos!



* Assum preto (Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira)

Tudo em vorta é só beleza
Sol de abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor

Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió

Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá

Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus

13.8.09

Poesia e música - relações íntimas de um par perfeito

A canção está chegando ao fim? Letra de música é poesia? Qualquer amante dessas duas formas de expressão – canção e poesia - já se deparou com tais questionamentos, cuja melhor resposta é não haver resposta. Trata-se do tipo de discussão clássica em que a conclusão é o que menos importa. Uma nova oportunidade de discussão – sem conclusão - desses temas foi criada por meio do documentário Palavra Encantada, de Helena Solberg e Márcio Debellian, que analisa a relação entre poesia e música, por meio de depoimentos de Adriana Calcanhoto, Chico Buarque, Maria Bethânia, Lenine, Martinho da Vila, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Zélia Duncan, Tom Zé, entre outros.

Pra começo de conversa, o compositor Paulo César Pinheiro, um dos grandes poetas do nosso cancioneiro que, em Poder da criação, descreve a arte de compor ("Não, ninguém faz samba só porque prefere. Força nenhuma no mundo interfere sobre o poder da criação. Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito. Nem se refugiar em lugar mais bonito, em busca da inspiração"), afirma, no filme, que não há como negar que Chico Buarque é poeta.

O próprio Chico, por sua vez, afirma que não (ou nega que sim) e não é por modéstia. Diz que escreve letras direcionadas para a música, palavras que só estão ali por causa dela, que dançam conforme a música e cita como exemplo a letra da canção Uma palavra, de sua autoria, em que a palavra palavra repete-se, ao final de vários versos, por exigência da melodia ("Palavra prima / Uma palavra só, a crua palavra / Que quer dizer tudo / Anterior ao entendimento, palavra / Palavra viva, palavra com temperatura, palavra / Que se produz muda / Feita de luz mais que de vento, palavra").

Esse fenômeno pelo qual passa o letrista - e não o poeta – tem outro exemplo claro, que ora me vem à mente: o caso Romaria, de Renato Teixeira. Um dos melhores versos dessa canção, imortalizada por Elis Regina, foi feito por exigência da melodia. O compositor não conseguia concluir uma estrofe e só após um longo tempo chegou à solução, ao repetir três vezes a expressão final, encaixando letra e música: "como eu não sei rezar, só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar". Pura poesia, não poderia ter ficado melhor.

Ao falar da repercussão da Bossa Nova em sua geração, Chico afirma que, ao conversar com pessoas de gerações posteriores, costuma constatar que elas não sofreram tamanho impacto, por já terem pegado o bonde andando e estarem acostumados com aquele tipo de som, não mais uma novidade. É como penso, sempre que me vejo dividido entre a admiração por esse estilo e uma certa frustração por não sentir todo seu impacto, representado, sobretudo, pela bela canção Chega de saudade, pela voz dos intérpretes e pela batida de violão de João Gilberto. O maior mérito estava nas mudanças de padrões, coisas que só quem escutou no rádio Sílvio Caldas ou Orlando Silva seguidos de João Gilberto ou Tom Jobim pôde entender.

Poesia agrada a alguns, música instrumental, a outros, mas ambas estão longe de serem unanimidade. É na canção popular que essas duas partes - representadas por letra e melodia -, juntam-se e atingem seu maior público. Alguns poetas até enveredam para esse ramo - como Vinícius de Moraes – ou são tragados por ele, em parcerias como Chico e João Cabral (que não gostava de música); Fagner e Ferreira Gullar ou Cecília Meireles. Maria Bethânia recita poesias antes de canções - momentos sublimes, como Soneto de fidelidade seguido de Céu de Santo Amaro - e Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) aproxima a poesia de João Cabral de um público mais jovem, que costuma recitar de cor, junto com ele, versos do poeta.

Por outro lado, ao juntar-se letra e música, a mensagem contida naquela, muitas vezes, passa despercebida. É o caso, por exemplo, de uma poesia que Antônio Cícero recita no filme, feita por ele para seu pai, que se transformou numa canção gravada por sua irmã Marina Lima, na década de 90: Eu vi o rei *. Poeta de uma geração mais nova, Cícero nunca imaginou que suas poesias se prestariam para compor uma canção - nem as escrevia com essa intenção - até ser estimulado por Marina, sua parceira em várias músicas.

Além de imagens históricas - como uma impagável entrevista com Caetano Veloso, após sua interpretação de Alegria, alegria, num dos festivais da TV Record -, os depoimentos enriquecem o filme. Lenine atribui à miscigenação o fato de estarmos à frente dos europeus na música popular. Ferréz comenta a forte ligação entre rap e repente (até fonética, como acabo de perceber) ou cordel, estes, por sua vez, reverenciados por Arnaldo Antunes, mestre das meias palavras, não as que dissimulam, mas as que bastam ao bom entendedor. Tom Zé exalta o rico e singular jeito de falar do sertanejo, sobretudo o iletrado, que faz da audição sua antena parabólica. Fala, ainda, das deliciosas ousadias de Dorival Caymmi em suas canções.

Jovens baixam músicas pela internet, lojas de disco rareiam: mudaram os paradigmas. Completa o quadro a natural diminuição das possibilidades de músicas – indutora da idéia de que "no meu tempo elas eram melhores" - o que, como diz José Miguel Wisnik, não significa que a canção esteja chegando ao fim, muito menos no Brasil, onde, segundo ele, criou-se uma música popular forte que, ao unir a leveza das canções a poesia de qualidade, conquistou um público cativo. O tema dá margem a vários filmes e Palavra (En)cantada poderia ser como Sexta-feira 13, que chega à parte 12 em 2009. Afinal, a canção é como Jason, personagem principal deste filme: quando se supõe seu desaparecimento, ela ressurge, com força.



* Eu vi o rei (Marina Lima /Antônio Cícero)
Eu vi o rei chegar

Um rei assim
Que não escuta bem
Que adora luz
Mas não vê ninguém
Prefere olhar
O horizonte, o céu
Longe daqui
é tudo seu

Seu sangue azul
Ninguém diz de onde vem
De que sertão
De que mar, que além
E para nós
Ele jamais se abriu
Só uma vez
Quando partiu

Um rei assim
Cultiva solidão
Sombria flor
No coração
E claro é
Que o pêndulo do amor
Às vezes vai
Até a dor

Devo dizer
Que eu não sofri demais
Mas devo dizer
Que acordei
Mesmo sem ser
Tudo que eu imaginei
Devo dizer
Que eu o amei

Eu vi o rei chegar

16.7.09

Conversa com verso - 2009.1

Primeiro, vamos dar vivas a um caboclo brasileiro, figura simples e bacana, que faria noventa anos daqui a algumas semanas. É Jackson do Pandeiro, coqueiro das terras paraibanas, gênio do cancioneiro brasileiro, ritmista inovador e ligeiro, que pôs pra cantar o país inteiro e eternizou uma porção de música bacana, como Sebastiana e o sambinha Chiclete com banana*, que ironiza a invasão americana em nosso terreiro.

Outro Jackson, este não do pandeiro nem brasileiro, nascido em Indiana, em terra norte-americana, sucesso aqui e no estrangeiro, deixou seus fãs em desespero, ao perder a vida tão ligeiro. Michael parecia um doidivanas, mas era figura humana, mesmo com uma ou outra atitude leviana, como o caso derradeiro do abacaxi que quis deixar pra Diana, de tomar conta de seus herdeiros.

Os dois Jackson, o segundo e o primeiro, podem agora compartilhar o tal batuque brasileiro, como decantado pelo primeiro, no tal sambinha que deu ibope, do Chuí ao Oiapoque. É o rei do coco e o rei do pop, num tiru-riru-bop-bip-bop, misturando samba com rock, Paraíba com Nova York, rala-bucho com moonwalk, cantando Ben ligeiro, no compasso do pandeiro.

Com tudo a Temer na Câmara e procurando Sarney pra se coçar no Senado, o negócio ficou complicado. Passagem aérea pra deputado e apadrinhado, excesso de empregado no Senado, tudo com cargo comissionado, bem remunerado, tratando o público como privado. O ardil é completo e a parente. É decreto discreto, descrédito consignado, ato secreto beneficiando filho e neto, namorado, cunhado, afilhado. Aparentado pra todo lado, todo o mundo quieto, com bico calado, feito menino levado quando faz algo errado.

O prejuízo é concreto, não pode ser desprezado e a gente deve ficar ligado em qualquer ato abjeto, que possa ser objeto de questionamento direto ou investigado por ser incorreto. Com ou sem foro privilegiado, se o culpado não é cassado, se Agaciel é agraciado, o país fica desmoralizado e o Senado taxado de casa dos horrores é o resultado.

O vírus H1N1, ao que parece, não é pior que o da gripe comum, cujo mal é quase nenhum e não merece a alcunha de espanhola do século XXI, já que a proporção entre quem padece e quem falece é de duzentos pra um. Mas o cidadão comum não esquece que o vírus virou pandemia pra OMS e faz prece pra que ela diminua o stress e confesse que o risco do H1N1 é nenhum, ou quase nenhum, se não o pânico cresce e o pandemônio recrudesce, enquanto a pandemia permanece.

Fernando Lugo, vulgo super-pai, entrou nos anais da sociedade do Paraguai e de lá não sai mais. Com tantos DNA’s iguais, virou pai de aluguel e convocou nos jornais: criancinhas a Lugo. Não o julgo, mas daqui a um pouco mais, todo meu Paraguai vai chamá-lo de papai, e ele, como bispo e político, vai ficar sob o jugo de episco-pais que substituem votos de castidade por votos eleitorais.

Enquanto isso, na desunião européia, dividido em suas relações exteriores, Sarkozy levou Berlusconi na Bruni e foi mandado à Merkel por um Zapatero que nunca viu mais Gordon.



* Chiclete com banana (Gordurinha)

Eu só ponho bip-bop no meu samba
Quando o Tio Sam pegar o tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele aprender que o samba não é rumba

Aí eu vou misturar
Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim

Turiru-riru-riru bop-bip-bop-bip-bop
Quero ver a grande confusão
Turiru-riru-riru bop-bip-bop-bip-bop
É o samba-rock meu irmão

Mas em compensação
Eu quero ver um boogie-woogie
De pandeiro e violão
Eu quero ver o Tio Sam de frigideira
Numa batucada brasileira

3.7.09

É isso...

“Cure o mundo, faça dele um lugar melhor pra você, pra mim e pra toda a raça humana” (Michael Jackson)

É fácil externar apreço por um artista depois que ele morre. Em tais situações, é comum até o surgimento de admiradores de última hora. A relação das pessoas da minha faixa etária com Michael Jackson, porém, é antiga ou de primeira hora, algo que quem nos é contemporâneo pode entender melhor. Os pouco mais novos só acompanharam sua trajetória a partir da fase de super-mega astro pop dos anos 80. Os muito mais novos, nem isso, conheceram apenas suas excentricidades, transformações visuais e escândalos que mudaram as folhas em que costumava aparecer nos jornais, de cultura e entretenimento para páginas policiais e de fofocas.

Na década de 60, sobretudo nos Estados Unidos, os negros começaram a conquistar importantes direitos, em boa parte graças ao ativista político Marthin Luther King. Crescia, entre eles, um orgulho racial que os permitia valorizar suas características e sua cultura. Eles saíam às ruas com roupas e ornamentos típicos e exibiam toda a beleza de seus cabelos em cortes (ou falta deles) à época chamados de black power. Foi nesse cenário – ou por causa dele, ou ainda, junto com ele - que surgiu, naquele país, uma gravadora – a Motown Records -, que contratava apenas músicos negros para o seu elenco, entre eles Diana Ross, Marvin Gaye, Stevie Wonder e um grupo de cinco irmãos, que formavam o conjunto Jackson Five, do qual fazia parte Michael Jackson.

No início dos anos 70, vivia-se ainda os efeitos, embora já mais rarefeitos, da beatlemania e do movimento hippie. Eu e meus irmãos, ainda crianças e de idades próximas um do outro, éramos, como os rapazes de Liverpool, em número de quatro e usávamos seus mesmos cortes de cabelo (ou falta deles). Mas os Beatles não eram, exatamente, da nossa geração, tanto que só me dei conta da importância deles para a música mundial quando John Lennon faleceu, em 1980. Pouco antes, em 1977, tinha-se ido, também, Elvis Presley, este ainda mais distante de nós, que o conhecíamos apenas dos - à época já antigos - filmes que protagonizara, exibidos em sessões da tarde da TV.

Os jovens de Indiana, por sua vez, eram ídolos contemporâneos nossos, nós crianças, eles adolescentes. Os Jackson Five eram tão famosos que inspiraram um desenho animado na TV, em que os garotos viviam aventuras, entre um e outro número musical a que assistíamos vidrados. Não podíamos ter seus cabelos black power, mas os admirávamos, sobretudo o caçula Michael, simpático e de bela voz, que logo se destacou e passou a seguir carreira solo.

Ben (tema de filme homônimo sobre um garoto solitário que não recebe atenção dos pais e torna-se amigo de um rato a quem chamava Ben), Music and me, Happy e One day in your life foram grandes sucessos da década de 70, quando cinco dos dez discos dessa fase de sua carreira foram lançados. Em Off the wall (1979), já maior de idade, o cantor captou um pouco da onda “disco” do momento e começou a se transformar num grande astro.

Já na década de 80, Michael Jackson lançou o álbum mais vendido de todos os tempos – Thriller, de 1982. Tudo o que fez nessa década obteve êxito, como as parcerias com Paul McCartney (The girl is mine e Say, say, say) e Lionel Richie (We are the world), esta última gravada por um grupo de cantores, num projeto de autoria dos dois compositores, denominado USA for Africa, que tinha como objetivo ajudar as vítimas da fome naquele continente e chamar atenção para o problema.

Graças a sua performance nos palcos, virou febre, também, o passo batizado de moonwalk, que considero, até hoje, uma das coisas mais impressionantes feitas em termos de coreografia e dança, sobretudo por parecer desafiar as leis da física. Michael inovou, também, na linguagem dos videoclipes, transformando-os em bem produzidos filmes de micro-metragem.

Após o sucesso estrondoso de Thriller, alguns fãs de primeira hora passaram a esconder a admiração pelo cantor, que passou a ser visto por muitos como representante de uma cultura consumista que nos queria ser imposta pelos Estados Unidos, entre McDonald’s e Coca-Colas. Ao mesmo tempo, eu e meus irmãos recebíamos, em casa, influências positivas de nosso pai, que não era comedor de criancinhas (Michael também não), mas possuía idéias progressistas. Diante disso, depois que um de meus irmãos comprou esse disco, passei a ameaçá-lo com um “vou dizer a papai”, numa brincadeira em que punha como inconciliável sua admiração por um e outro.

Há dois meses, portanto antes da morte do cantor, dei-lhe a oportunidade de acertar contas com o passado ao presenteá-lo com edição comemorativa dos 25 anos de lançamento de Thriller, quando ele pôde, enfim, revelar minha chantagem e seu pecado a nosso pai, que nos “perdoou” e achou muita graça.

A figura frágil que queria ser eternamente criança se foi, antes de iniciar sua nova turnê, “This is it”. É isso. Seus traumas de infância, aliados à tentativa frustrada de ser o que se esperava dele – e por esse aspecto, todos nós matamos Michael Jackson -, levaram-no à negação ou tentativas de desconstrução da própria imagem, o que culminou com a destruição de sua própria vida. Cada um sabe de seus motivos e, como já foi dito, de perto, ninguém é normal. É a natureza humana, assim que ela nos faz.


22.6.09

São João no Nordeste
(ou de como filósofo grego caiu no forró)



Um violeiro buscava
Inspiração pra um tema
Quando num sonho encontrou
A solução do problema
Uma questão matemática
Que envolvia um teorema

Uma figura geométrica
Do teorema complicado
Que também servia de nome
A instrumento bem usado
Deu ao cordel forma e métrica
Como ele havia sonhado

Assim então essa história
Nesses versos se propaga
Conta a estranha ligação
Do triângulo de Pitágoras
Com a zabumba e a sanfona
Do forró de Luiz Gonzaga

Zabumba e sanfona a sós
Queriam mais um ao lado
O Triângulo das Bermudas
Não deu conta do recado
Eis que surge o de Pitágoras
Que se mostra interessado

O triângulo amoroso
Deixou a coisa confusa
Co’os quadrados dos catetos
E uma tal de hipotenusa
De um lado dois cabra-macho
Do outro uma bela musa

A zabumba e a sanfona
Enfim desataram o nó
Reverteram o teorema
Resolveram o quiproquó
Se juntaram ao triângulo
Formataram o forró

Seu Pitágoras que né besta
Nem ligou pra confusão
Veio s’imbora pro Nordeste
Dançar forró e baião
Largou teoremas e teses
Pra viver de curtição

O filósofo entendido
De álgebra e geometria
Encontrou bela morena
Como há tempo ele não via
Se enxeriu pra tal menina
Todo cheio de ousadia

Veio com prosa esquisita
Pra levar a cabo a trama
Enrolou a língua toda
Pra impressionar a dama
E deixou a boca cheia
De alfa beta delta gama

A morena que sabia
Da tenção do camarada
Se esquivou como podia
De tão ilustre cantada
E sem mais nem meio mais
Respondeu indignada

Disse a ele meu senhor
Você tá falando grego
Eu não sou mulé de Atenas
E já tenho meu chamego
Pare co’essa gritaria
Não perturbe meu sossego

Alfa beta delta gama
Essas damas não conheço
A verdade é que o senhor
Não sabe da missa um terço
Eu já sou comprometida
Não espere meu apreço

Em todo caso o senhor
Está bem acompanhado
Leve as quatro raparigas
Pra aprender forró e xaxado
E me deixe aqui em paz
Com meu caro namorado

Grego gringo gaguejou
Sem saber o que dizer
Deixou a dama de lado
Procurou o que fazer
Foi atrás de um sanfoneiro
Com o intuito de aprender

Paciente, o sanfoneiro
Começou a preleção
Ensinou ao calculista
A origem do São João
E de como aquela gente
Tinha tanta animação

Nosso povo nordestino
Carrega uma triste sina
Há uma época do ano
Em que a seca predomina
Não chove nem um pouquinho
Quando chove é chuva fina

Como lá na sua terra,
Aqui há também guerreiro
A batalha é constante
De janeiro a janeiro
E o povo é, mesmo na luta,
Simpático e hospitaleiro

Parece tragédia grega
A labuta nordestina
Sofre planta, gado, gente
Angústia que só termina
Quando a chuva anuncia
Tempo de festa junina

A chegada da colheita
Diminui essa agonia
E o São João é o festejo
Que traduz essa alegria
Disse ele com orgulho
Ao ilustre que o ouvia

Foi aí que o estrangeiro
Concluiu aliviado
Que o triângulo desertor
Tava aqui bem empregado
E foi por uma causa justa
Que fugiu pra esses lados

Sua musa hipotenusa
Quis saber seu paradeiro
Chegou em Minas Gerais
Quando veio do estrangeiro
E encontrou um novo amor
O Triângulo Mineiro

Os catetos endoidaram
Co’o desfecho dessa história
Chamaram profissional
Pra ajudar na luta inglória
O cabra era especialista
Em análise combinatória

A análise surtiu efeito
E os doidos tiveram alta
Mais sugestões do doutor
Quiseram obter sem falta
Fazer dupla de forró
Virou o assunto em pauta

Os dois criaram conjunto
Pra se apresentar aqui
Só faltava achar um nome
Que vieram a sugerir
E à bandinha de forró
Chamaram Cateto em Si

À quadrilha de São João
Convidaram o grego culto
Pois se a ordem dos fator
Não altera o produto,
Se tem matuto doutor
Pode ter doutor matuto

Tirou-se a prova dos nove
Provou-se por a mais bê
O São João do Nordeste
É difícil de esquecer
E pra gregos e troianos
É bonito de se ver

Clamou aos deuses do Olimpo
O grego, então, fascinado
Pedindo que protegessem
Esse povo abençoado
E descreveu com detalhes
O que foi presenciado

Pra começar, à visão
Fogos, balões coloridos
Delícias ao paladar
Canções para os ouvidos
É o São João no Nordeste
Bom em todos os sentidos

Fogueiras e bandeirinhas
Completam o quadro perfeito
E nada há que emocione
Em maior grau o sujeito
Do que escutar os acordes
De Asa Branca ou Assum Preto

O violeiro despertou
E assim terminou o sonho
De um filósofo renomado
Que dançou forró, bisonho
E pra findar o cordel
Não sei mais o que é que ponho

O São João desvela o tema
Desse sonho a cada ano:
Pernambuc-ano, bai-ano
Sergip-ano, alago-ano
Enfim, é o Nordeste inteiro
De mãos dadas celebrando

Mês de junho se anuncia
O coração canta feliz
Comprovando por verdade
O que todo o mundo diz:
O São João no Nordeste
É o melhor do meu país

11.6.09

Uma pena

Um documentário em homenagem ao cantor Wilson Simonal, que completaria 70 anos em 2009, tenta mostrar, sobretudo àqueles com menos de cinquenta anos e que não acompanharam a fase áurea da carreira do músico, o que ele representou para a música brasileira, ao mesmo tempo em que narra, por meio de depoimentos, um episódio polêmico no qual se envolveu e que mudou sua vida. Trata-se de “Simonal – Ninguém sabe o duro que dei”, de Micael Langer, Calvito Leal e Cláudio Manoel.

Simonal inovou com seu jeito de cantar e dançar cheio de suingue, que combinava bem com sua figura alegre, de sorriso aberto. Iniciou sua carreira na década de 60, com o apoio de Carlos Imperial - o mesmo que, pouco antes, havia lançado Roberto Carlos e, por isso mesmo, andava cheio de moral. Ainda nessa década, dividiu o palco com Sarah Vaughan, apresentou o programa Show em Si Monal na TV Record e atingiu o auge de popularidade.

Em 1969, já consagrado, apresentou-se no encerramento do IV Festival Internacional da Canção, não como concorrente, mas como convidado e foi bastante aplaudido pela plateia que lotava o ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Tudo ia bem. Simonal virou garoto-propaganda da Shell, integrou a comitiva da seleção brasileira à copa de 70 – dividindo as atenções com Pelé - e gravou a canção País tropical, de Jorge Ben, antes mesmo do compositor.

Em tempos de ditadura e repressão, fazer anúncio de uma multinacional estadunidense, reverenciar uma seleção de futebol e um evento esportivo tidos como ópio do povo e cantar versos como “moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza” já seria suficiente para criar certa prevenção à figura do músico. Além do mais, não seria nada difícil um cara de origem humilde que esbanjava dinheiro e comprava carrões ser tachado de metido a besta pela “elite” e o filme ressalta tudo isso. Até aí, tudo poderia não passar de preconceito, mas foi seu envolvimento em caso polêmico que fez a opinião pública colocar o outro pé atrás em relação a ele. Em apenas três anos, o cara que, como dizia um de seus maiores sucessos*, fez o povo inteiro cantar, passou do auge da fama ao ostracismo.

O episódio envolveu o contador da empresa de Simonal que, ao ser vítima de espancamento por parte de agentes do DOPS - Departamento de Ordem Política e Social, também conhecido como órgão oficial de tortura do governo militar -, denunciou o músico como mandante. A versão de Simonal era que estaria sendo roubado e queria dar uma prensa no contador. Para este, o cantor era perdulário e não administrava bem o dinheiro que ganhava. Simonal foi preso e acusado de ser informante do DOPS, o popular dedo-duro. Em depoimento, acusou o contador de ser terrorista e de ameaçar sua família, o que só piorou a situação. Passou a ser discriminado pelo público e colegas de profissão, bem como boicotado por emissoras de televisão e casas de shows, que não queriam assumir os riscos de contratá-lo.

O filme procura ser o mais isento possível e colhe depoimentos dos dois lados. De um lado, amigos e parentes como Chico Anísio, Tony Tornado, Miele, Sandra Cerqueira – sua segunda esposa - e os filhos Wilson Simoninha (a quem Simonal dedica a canção Tributo a Marthin Luther King, em momento especial registrado) e Max de Castro. Do outro, a turma do Pasquim – periódico que, à época, não o perdoou – e a própria vítima do caso, o contador Raphael Viviani, cujo relato dos fatos é a parte mais surpreendente do documentário, ainda que os depoimentos emocionados dos familiares do cantor também nos façam refletir que, se ele errou, pagou caro por isso.

Entre um lado e outro, a relevante opinião de pesquisadores e entendidos de música como Ricardo Cravo Albin e Nelson Motta é destacada. Interessante, também, o fato de um dos diretores do filme, Cláudio Manoel, fazer parte da turma do Casseta e Planeta, fusão dos periódicos Casseta Popular e Planeta Diário, este, por sua vez, fruto do Pasquim.

Na primeira apresentação após o episódio, Simonal recebeu do público sonora vaia que o impediu de cantar. Ficou evidente, a partir daí, a repercussão do caso e as consequências irreversíveis para sua carreira.

Em depoimento ao filme, o jornalista Artur da Távola afirmou que “vivemos em uma imprensa que toma o indício como sintoma, o sintoma como fato, o fato como julgamento, o julgamento como condenação e a condenação como linchamento”. A necessidade e a importância da liberdade de imprensa – assunto que mereceu destaque recentemente com a revogação da antiquada lei de imprensa - é indiscutível, mas, julgamentos à parte, o que se percebe, neste e em vários outros casos, é o assustador e inegável poder dos meios de comunicação, o qual pode ser usado para o bem ou para o mal e, em casos extremos, induzir o povo a exaltar crápulas ou destruir inocentes. Culpado ou inocente, Wilson Simonal já cumpriu sua pena.



Sá Marina (Antônio Adolfo / Tibério Gaspar)

Descendo a rua da ladeira
Só quem viu, que pode contar
Cheirando a flor de laranjeira
Sá Marina vem pra dançar

De saia branca costumeira
Gira o sol, que parou pra olhar
Com seu jeitinho, tão faceira
Fez o povo inteiro cantar

Roda pela vida afora
E põe pra fora essa alegria
Dança que amanhece o dia
Pra se cantar

Gira, que essa gente aflita
Se agita e segue no seu passo
Mostra toda essa poesia do olhar

Deixando versos na partida
E só cantigas pra se cantar
Naquela tarde de domingo
Fez o povo inteiro chorar

31.5.09

A MPB em seu esplendor - Parte II

Passados os movimentos da Bossa Nova, Tropicalismo e Jovem Guarda, e com a censura e a repressão impostas pelos nossos anos de chumbo dificultando o surgimento de novas expressões artísticas, o grande movimento dos anos 70 foi mesmo a Música Popular Brasileira, que ainda conseguiu conviver com a onda disco, importada dos Estados Unidos. O sucesso era tanto que representantes da dita MPB bateram recordes de venda de discos, algo incomum nas décadas seguintes, marcadas pelo predomínio de outros estilos, como ocorreu com o rock nos anos 80, axé e sertanejo nos anos 90.

Depois de dedicar um belo trabalho ao público infantil - Os saltimbancos -, Chico Buarque lançou disco que trazia as “liberadas” Cálice, com participação de Milton Nascimento, Tanto mar e Apesar de você, bem como algumas canções que estariam presentes em seu trabalho seguinte, a trilha sonora da peça “Ópera do Malandro”: Pedaço de mim, com participação de Zizi Possi, O meu amor, com interpretação de Elba Ramalho e Marieta Severo e Homenagem ao malandro. O disco tinha, ainda, Feijoada completa, Até o fim (já de saída a minha estrada entortou, mas vou até o fim), Pequeña serenata diurna – do cubano Sílvio Rodriguez, única não composta por Chico – e duas parcerias com Francis Hime, Pivete e Trocando em miúdos.

Talvez o melhor exemplo da alta qualidade das canções da época seja o citado álbum duplo Ópera do Malandro, que está completando trinta anos, como boa parte dos discos comentados, do final dos anos 70. Além de versões bem-humoradas para trechos de óperas, Chico compôs todas as canções do disco. Interpretou sozinho um dos destaques - Geni e o Zepelim - e contou com participações de Alcione em Casamento dos pequenos burgueses (vão viver sobre o mesmo teto até que a morte os una), Zizi Possi em Teresinha, Nara Leão em Folhetim, Gal Costa e Francis Hime em Pedaço de mim, Elba Ramalho e Marieta Severo de novo em O meu amor e mais: A Cor do Som, MPB-4, Marlene, Moreira da Silva, João Nogueira e As Frenéticas.

Com várias nações latino-americanas vivendo períodos de ditadura militar, houve uma aproximação natural de cantores desses países, como Pablo Milanés, Mercedes Sosa, Chico Buarque e Milton Nascimento. Chico fez versões para Iolanda e Cancion por la unidad de latino america, ambas do cubano Pablo Milanés. A segunda fez parte de Clube da Esquina 2, álbum duplo lançado por Milton em 1978, cujo maior destaque foi Maria, Maria, também gravada por Simone e Elis Regina. O disco reunia, novamente, Milton e os compositores mineiros Márcio e Lô Borges, Beto Guedes, Flávio Venturini e Fernando Brant. Contava, ainda, com participações de Francis Hime, Chico Buarque e Elis Regina.

Elis lançou disco gravado ao vivo, Transversal do tempo (78), que reunia, além de Fascinação, canções bem brasileiras, poéticas, políticas, como Rancho da goiabada, de João Bosco e Aldir Blanc (os bóias-frias quando tomam umas biritas espantando a tristeza...), Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, Querelas do Brasil, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc (o Brazil não conhece o Brasil), Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, Cartomante, de Ivan Lins e Vítor Martins, Deus lhe pague e Construção, de Chico Buarque, Boto, de Tom Jobim e Jararaca – ecológica até no compositor - e Cão sem dono, de Sueli Costa e Paulo César Pinheiro (se eu cantar, a alegria sai falsa, se eu calar, a tristeza começa). Grandes compositores na voz de grande intérprete.

Ivan Lins, por sinal, também gravou Cartomante em álbum cujo título - Nos dias de hoje - foi tirado da letra dessa música e que incluía Aos nossos filhos, também gravada por Elis. Tom Jobim lançou um disco ao vivo com Toquinho, Vinícius e Miúcha e outro em dois volumes com a mesma cantora. Sivuca marcou presença com o LP Cabelo de milho, que trazia, entre as faixas, Feira de Mangaio - grande sucesso na voz de Clara Nunes – e o lirismo de No tempo dos quintais, com participação, nos vocais, de Raimundo Fagner.

Pra fechar a lista com mais de cem músicas citadas, outros grandes destaques da época: Maluco Beleza, Coração Leviano, Ive Brussel, Amanhã, Êxtase, Sufoco, Sonhos, Romaria, A Rosa, Mal necessário, Coração tranquilo, Bye bye Brasil, O bêbado e a equilibrista, Flor de Lis, Feira moderna, O cio da terra, Canção da América, Pombo correio, Vou festejar, Casinha branca, Medo de avião, Rua ramalhete, João e Maria, Dia branco, Jura secreta, Doce vampiro, Dancin’ days, Sobradinho, Espanhola, Você não me ensinou a te esquecer. Encerro com uma homenagem aos artistas da nossa música, feita em 1993 por seu ilustríssimo representante, carioca meio paulista, meio pernambucano, meio mineiro, meio baiano. Um artista brasileiro.



Para todos (Chico Buarque)

O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro

Foi Antonio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas

Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro

Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho

Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto

Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista

O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Vou na estrada há muitos anos
Sou um artista brasileiro

15.5.09

A MPB em seu esplendor - Parte I

Quem já se entendia por gente no final da década de 70 do século passado pôde vivenciar um dos períodos mais férteis da música popular brasileira, com discos mais bem feitos que esconderijo de Osama Bin Laden. Muitos dos cantores de MPB – sigla que, por sinal, começou a ser empregada em meados da década anterior, com os festivais de música -, lançaram, nesses anos, alguns de seus melhores discos. Tantas canções de qualidade em tão poucos anos é algo difícil de se repetir. Os LP’s desses cantores eram bastante esperados, da capa ao conteúdo, e a qualidade, em geral, superava as expectativas. Além do mais, ainda tínhamos Elis, Vinícius, Nara e Clara.

Evoé, jovens à vista, duas grandes cantoras começaram a carreira nesse período, contando com o aval de nada menos que Chico Buarque: Elba Ramalho e Zizi Possi. Elba, que vinha de participação na peça Morte e vida severina como atriz e cantora, lançou, em 79, o disco Ave de prata, que tinha como destaque Não sonho mais, de Chico, além de Canta coração e Ave de prata. Zizi, que estreou em 78, deixou para a posteridade suas interpretações para Pedaço de mim, de Chico, Nunca e Luz e mistério, integrantes de seu segundo disco, Pedaço de mim. Estrearam, ainda, Ângela Rô Rô, que brilhou como cantora e compositora com Tola foi você e Amor meu grande amor, Marina Lima e os grupos A Cor do Som, Boca Livre e 14 Bis.

Logo após a experiência conjunta dos Doces Bárbaros, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia reinvadiram, a sós, o solo fértil da nossa música. Em 1977, Caetano atacou de Bicho, que louvava, nas canções, vários espécimes de seres vivos (Gente, Um índio, Tigresa, O leãozinho). Um ano depois, lançou o disco Muito, que se hoje não é muito lembrado, trazia pérolas eternas, como Sampa e Terra, além de Muito romântico, também gravada por Roberto Carlos. Em paralelo aos dois trabalhos, lançou Muitos carnavais - apenas com marchinhas e frevos - e um disco ao vivo, com Bethânia. Fechou a década com Cinema transcendental, que incluía Lua de São Jorge, Beleza pura, Menino do Rio e Cajuína.

Depois do disco Refazenda, de 1975, Gil completou a trilogia “Re” com Refavela (77) e Realce (79), que nos presentearam com canções como Aqui e agora, Sandra, Super-homem, Toda menina baiana, Não chore mais, além das que deram nome aos discos. Ainda dividiu com Rita Lee o álbum Refestança (78), época em que a cantora compôs, com Paulo Coelho, as duas versões de Arrombou a festa*, em que caçoava da MPB. Bethânia em Álibi e Gal em Água viva deram voz e graça a canções de grandes compositores como Chico, Caetano, Gil e Gonzaguinha. A primeira com O meu amor, Diamante verdadeiro, Cálice e Explode coração e a segunda com Folhetim, Mãe, De onde vem o baião e O gosto do amor, entre outras.

Fora os bárbaros baianos, uma nova leva de retirantes, incluindo Elba, colocou ainda mais nos eixos nordestinos a música brasileira de então: Zé Ramalho, que já havia lançado o experimental Paêbirú, com a boa companhia de Lula Côrtes, contribuiu, nos dois primeiros trabalhos de sua carreira solo, com Vila do sossego, Chão de giz, Bicho de sete cabeças, Admirável gado novo, Frevo mulher, entre outras. Fagner, que começara a carreira no início da década, alcançou, com os discos Quem viver chorará (78) e Beleza (79), o auge do sucesso de público e crítica. Revelação e Noturno foram os grandes destaques desses dois álbuns.

A cantora Simone também marcou época com seu LP Pedaços, de 1979, no qual interpretava temas sobre encontros, como o samba Tô voltando, que virou hino da anistia e sobre separações, como Começar de novo e Saindo de mim ("você foi saindo de mim por todos os meus poros e ainda está saindo nas vezes em que choro"), ambas de Ivan Lins e Vítor Martins. E mais: Outra vez, de Isolda, Pedaço de mim e Sob medida, de Chico Buarque.

Roberto Carlos continuou sua cavalgada em torno do sucesso com um bom disco, em 1977, em que todas as músicas tocaram em rádio. Falando sério, amigo. Roberto, outra vez, lançou disco muito romântico e ainda homenageou a Jovem Guarda, com Jovens tardes de domingo. Nos anos seguintes, num gesto familiar, fez coro com Pai e mãe de Gil, Mãe de Caetano e Pai de Fábio Júnior, ao presentear a mãe e o pai com Lady Laura e Meu querido, meu velho, meu amigo, com direito a Café da manhã, ainda que sovinamente requisitado: “vou pedir um café pra nós dois.



* Arrombou a festa II (Rita Lee - Paulo Coelho)

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
Quando a gente fala mal, a turma toda cai de pau
Dizendo que esse papo é besteira

Na onda discoteque da América do Sul
Lenilda é Miss Lene, Zuleide é Lady Zu
Pra defender o samba contrataram Alcione
É boa de piston mas bota a boca no trombone
No meio disso tudo a Fafá vem dar um jeito
Além de muita voz, ela também tem muito peito
E a música parece brincadeira de garoto
Pois quando ligo o rádio ouço até Cauby Peixoto
Cantando: “Conceição!”

Ai, ai, meu Deus, o que foi que aconteceu
Com a música popular brasileira?
Quando a gente fala mal, a turma toda cai de pau
Dizendo que esse papo é besteira

O Sidney Magal rebola mais que o Matogrosso
Cigano de araque, fabricado até o pescoço
E o Chico na piscina grita logo pro garçon
Afasta esse cálice e me traz Moët Chandon
Com tanto brasileiro por aí metido a bamba
Sucesso no estrangeiro ainda é Carmen Miranda
E a Rita Lee parece que não vai sair mais dessa
Pois pra fazer sucesso arrombou de novo a festa

Ziri, ziriguidum, skindô, skindô, lelê
Sai da frente que eu quero é comer
A música popular brasileira
Lady Laura
A música popular
Parabéns a você, parabéns para a...
Música popular
Oh, eu te amo, oh, eu te amo, meu amor
Ai Sandra Rosa Madalena
O meu sangue ferve pela...
Música popular
Oh, fricote, eu fiz xixi
Fricote, eu fiz xixi
Na música popular brasileira
Corre que lá vem os "hóme"!

1.5.09

Caminhando e cantando - os dias eram assim

Quando se fala em música de protesto, Geraldo Vandré é o primeiro nome que nos vem à cabeça. Vandré tinha convicção de que a arte constituía poderosa arma contra o regime militar e, por conta disso, não via com bons olhos aquela que não se prestasse a tal fim. Desaprovava o uso de guitarras da Jovem Guarda e do Tropicalismo – influência externa, em geral associada ao imperialismo estadunidense -, bem como os temas mais suaves da Bossa Nova, também pouco engajados politicamente.

O compositor paraibano teve curta carreira artística, talvez desiludido com o caminho que traçava o país, a perseguição que sofria por lhe ser contrário e as dificuldades com a censura. Lançou apenas cinco discos, sendo o último em 1973. Tempo suficiente, porém, para compor belas canções, como Disparada e Canção da despedida. Sua canção mais conhecida, Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores), tornou-se hino de resistência à ditadura. Era fascinante escutar pessoas cantando, em rodas de violão ou reuniões informais, uma música que não tocava em rádio e televisão, nem estava disponível em disco, o que, naqueles tempos, apenas contribuía para torná-la especial.

Da desilusão de Roda-Viva (“tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”) à esperança de Vai Passar (“vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade”), Chico Buarque foi o compositor que melhor traduziu o sentimento do povo em relação ao rumo político que o país tomava. No início dos anos 70, período crítico da ditadura militar, mandou um recado mais do que direto contra o governo e a repressão em Apesar de você. Quando a censura deu conta do recado, a canção já havia sido lançada em compacto simples que foi, então, recolhido.

O disco Calabar (1973), trilha sonora para a peça de mesmo nome, com composições de Chico Buarque e Ruy Guerra, teve que mudar a capa e o título, que passou a ser Chico canta. Fora isso, trechos de música foram alterados, palavras substituídas ou suprimidas. No jogo de palavras em que era mestre, Chico usou as sílabas de Calabar como mote de uma das canções do disco: Cala a boca Bárbara. Outras duas – Ana de Amsterdam e Vence na vida quem diz sim - apenas foram liberadas em versões instrumentais. Com subtítulo “O elogio da traição”, a peça fazia uma analogia entre Calabar – personagem da história do Brasil visto de forma controversa como traidor - e os opositores do regime militar.

Com o nome cada vez mais visado, Chico gravou, no ano seguinte, disco com músicas de outros compositores, com um sugestivo título: Sinal fechado. Para escapar da censura, passou a adotar, até ser descoberto alguns meses depois, o pseudônimo Julinho de Adelaide, com o qual assinou Milagre brasileiro, Acorda amor (“depois de um ano eu não vindo, ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”) e Jorge Maravilha (“você não gosta de mim, mas sua filha gosta”).

Tim Maia disse, certa vez, que com uma música de Ivan Lins faria umas dez, em exaltação ao estilo apurado das composições do colega. Compositor mais comumente associado a canções românticas, Ivan Lins, com o parceiro e letrista Vítor Martins, também foi esmerado em canções políticas, como A noite (“a noite tem deixado seus rancores gravados...”), Cartomante (“nos dias de hoje não lhes dê motivo, porque na verdade eu te quero vivo”) e Aos nossos filhos*, as duas últimas com interpretações notáveis de Elis Regina. Ironicamente, um de seus primeiros sucessos foi O amor é o meu país, de seu primeiro LP (1970), considerada alienada para um período tão conturbado.

Pra não dizer que não falei das flores, com a abertura política, canções outrora censuradas puderam, enfim, ser gravadas, como a citada música de Vandré, que fez parte de um disco ao vivo da cantora Simone, gravado no último dia do ano de 1979, no qual ela fazia votos de “que as pessoas menos afortunadas do que nós tenham um pouquinho de estabilidade na vida”. Um ano antes, num LP a que ele se refere como o “disco das samambaias”, por conta da capa, Chico Buarque não perdeu tempo e gravou logo três: Apesar de você, Cálice e Tanto mar.

A partir daí, surgiu uma leva de canções mais otimistas. Prenunciava-se “um novo tempo, apesar dos perigos”, com mensagens como “desesperar jamais, aprendemos muito nesses anos” (Ivan Lins e Vítor Martins). Como já disse Tom Zé, a felicidade é cheia de hino. Vieram, então, os hinos da anistia (O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc; Tô voltando, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro), das diretas (Pelas tabelas, de Chico Buarque), da Nova República (Coração de estudante, de Milton Nascimento e Wagner Tiso), culminando com o hino da redemocratização (Vai passar, de Chico Buarque e Francis Hime).

A arte, mais especificamente a música, sempre foi lenitivo a momentos difíceis. Quem canta seus males espanta, diz um dito popular. Cantando eu mando a tristeza embora, responde um cantor popular. E assim, virando a página, tocando em frente, caminhando, cantando e seguindo a canção, escrevemos nossa história em notas musicais.



* Aos nossos filhos (Ivan Lins / Vítor Martins)

Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

E quando lavarem a mágoa
E quando lavarem a alma
E quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

15.4.09

Formas simples pra falar de amor

Entre as décadas de 50 e 60, o rock começou a fazer barulho pelo mundo, revelando expoentes como Elvis Presley nos Estados Unidos e os Beatles na Inglaterra. Paralelamente a esse burburinho, o Brasil calava-se diante da Bossa Nova e seu novo paradigma de interpretação e composição. Pouco depois, questões políticas nacionais exacerbaram uma dicotomia lado A – lado B, expandindo-a para a música, até que os tropicalistas, ao olharem de lado para a categorização, deixarem de lado o preconceito e colocarem lado a lado os dois lados, fizeram tudo virar um saudável clipe sem nexo, meio bossa nova e rock’n roll.

Quem viveu a adolescência nesse período entre meados das duas décadas, além de vivenciar as mudanças inerentes a essa etapa da vida, presenciou aquelas por que passou a música e, certamente, não saiu ileso. O cantor e compositor Roberto Carlos foi um desses jovens. Iniciou a carreira nessa época, cantando no estilo da recém-surgida Bossa Nova, mas, logo em seguida, deixou o barquinho correr e criou o movimento que ficou conhecido como Jovem Guarda, inspirado no tal do rock. Não obstante, sempre foi figura benquista em todo o meio artístico, com amigos como o tropicalista Caetano Veloso e o bossanovista Ronaldo Bôscoli, que foi produtor de seus shows junto com Miele.

Em seu marcante LP de 1971, quando Caetano estava no exílio em Londres, Roberto gravou uma canção dele - Como dois e dois - e outra para ele, Debaixo dos caracóis dos seus cabelos*, que faz sutil referência ao exílio, como uma espécie de Sabiá (esta inspirada na Canção do Exílio, de Gonçalves Dias) a cantar em outra freguesia, a da Jovem Guarda. Em discos posteriores, gravou, também de Caetano, Muito romântico e Força estranha. Ainda no quesito homenagem, no qual, como diria Carlos Imperial, ele era dez, nota dez, compôs pro parceiro Erasmo Carlos (Amigo), pra seus pais (Meu querido, meu velho, meu amigo e Lady Laura) e talvez seja o único compositor a lembrar a categoria das tias (Minha tia).

O cantor, que está completando 50 anos de carreira, lançou, em 1959, seu primeiro trabalho, um compacto simples (que, pra quem não sabe, era uma miniatura de LP, ainda assim fisicamente um pouco maior que um CD, contendo duas músicas). Dois anos depois, lançou o primeiro LP, Louco por você, o único que ainda não autorizou a ser relançado em CD. Nesse disco, havia várias canções de Carlos Imperial (o tal do “dez, nota dez!”) e versões de músicas estrangeiras. No segundo LP, iniciou a parceria com Erasmo Carlos, com Parei na contramão e outra.

Durante quatro anos, apresentou, junto com Erasmo e Wanderléa, o programa Jovem Guarda, na tv Record. Várias canções de Roberto e Erasmo tornaram-se marcos desse período, como Quero que vá tudo pro inferno - lançada no LP Jovem Guarda (1965) e regravada dez anos depois -, que está para a Jovem Guarda como Chega de saudade para a Bossa Nova. A dupla inovou na linguagem de algumas letras: você tem que aprender a ser gente, sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo, e que tudo mais vá pro inferno, por exemplo, soaria incomum na voz de cantores de rádio.

Outro sucesso da época, Festa de Arromba, gravada por Erasmo, descreve uma reunião fictícia e faz referência a expoentes da Jovem Guarda. A canção serviu de inspiração para, na década de 70, Rita Lee e Paulo Coelho comporem versões irônicas e atualizadas, Arrombou a festa I e II (Ai, ai meu Deus, o que foi que aconteceu com a música popular brasileira?). Também nessa década, Roberto e Erasmo compuseram Jovens tardes de domingo, bela exaltação do que representou um tempo que provoca certa nostalgia mesmo em quem não o viveu.

Quando o movimento arrefeceu, Roberto Carlos passou a adotar o estilo romântico que o caracteriza até hoje, numa mudança perceptível a partir do citado LP de 71. Ainda assim, continuou retratando bem os dilemas da juventude, seus anseios ou a falta deles, como em À janela, Traumas ou Como dois e dois (“Tudo certo como dois e dois são cinco”). Nessa época, bateu recordes de venda de discos e quase tudo o que compôs tornou-se clássico da nossa música - e até nome de gente, como O divã, uma de suas pérolas. Ao longo da carreira, teve canções gravadas por intérpretes dos mais variados estilos, de Maria Bethânia a Chico Science.

No seu aniversário, em 19 de abril, RC inicia, em sua cidade natal, Cachoeiro do Itapemirim (ES), turnê cujo ponto alto será uma apresentação no Maracanã, Rio de Janeiro. Eventos especiais marcarão os 50 anos de carreira do cantor, todos em São Paulo. No Teatro Municipal, ocorrerá o show “Elas cantam Roberto Carlos”, do qual participarão várias elas. No ginásio do Ibirapuera, será apresentado o “Roberto Carlos Rock Symphony”, com participação de bandas de rock. O espetáculo “Emoções sertanejas” será exibido no estádio do Pacaembu e reunirá cantores de... música sertaneja. Haverá, ainda, a “Expo RC 50 anos”, sobre a carreira do cantor, no parque do Ibirapuera.

Como eu já disse em outra ocasião, ele estava certo ao afirmar: “Não adianta nem tentar me esquecer”. Sabe que é coisa muito grande pra esquecer.





* Debaixo dos caracóis dos seus cabelos

(Roberto Carlos e Erasmo Carlos)

Um dia a areia branca
Seus pés irão tocar
E vai molhar seus cabelos
A água azul do mar
Janelas e portas vão se abrir
Pra ver você chegar
E ao se sentir em casa
Sorrindo vai chorar

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante

As luzes e o colorido
Que você vê agora
Nas ruas por onde anda
Na casa onde mora
Você olha tudo e nada
Lhe faz ficar contente
Você só deseja agora
Voltar pra sua gente

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante

Você anda pela tarde
E o seu olhar tristonho
Deixa sangrar no peito
Uma saudade, um sonho
Um dia vou ver você
Chegando num sorriso
Pisando a areia branca
Que é seu paraíso