25.12.08

Retrospectiva recreativa

O ano vai chegando ao final, época em que deixamos fluir nosso espírito fraternal, em meio a ceias de Natal, Roberto Carlos Especial, etcetera e tal. Em mais uma habitual retrospectiva anual, vejamos o que foi notícia de jornal, o que houve de especial, para o bem ou para o mal, nos cenários nacional e mundial.

Depois do chilique de Milosevic e malgrado o protesto de Belgrado, de bom grado, parte do povo de Kosovo reconheceu como um país novo essa província do tamanho de um ovo. Em Cuba, Fidel encerrou seu papel de direção da nação e, sem escarcéu, abriu mão do martelo e da foice e foi-se ao léu. A população ergueu as mãos ao céu e tirou o chapéu, em comemoração à ascensão do seu irmão, que teve boa aceitação, mesmo mantida a retaliação do tio Sam. Sem confusão, mas com embargo, sin embargo.

Na grande potência, a inadimplência provocou falência, os bancos pediram clemência e Obama, sua excelência, homem do ano da Time, pediu ao povo paciência e clamou com veemência: dai-me sapiência para encarar a presidência, livrai-me do subprime e da desavença, perdoai-me pelo ataque ao Iraque, a invasão ao Afeganistão, o mal-estar com Ahmadinejad e os entraves com Hugo Chaves. Em xeque, o BRIC deu um breque e até que o sino da carestia por aqui repique, a crise se complique e pipoque, sem alguém que a explique, do Chuí ao Oiapoque, sem saco e sem saque, pra que o crescimento não empaque, seguimos no pique do PAC.

Passando de falta pra flauta, de saque pra sax, de repercussão pra percussão e de violação pra viola, louvemos dois compositores de primeira. Um faria cem anos, Angenor de Oliveira, o famoso Cartola, figura pioneira da música brasileira, criador da escola Estação Primeira de Mangueira e de canções que a gente a toda hora cantarola e põe pra tocar na vitrola ou radiola, como queira. O outro deixou a vida real, compositor do mesmo time, Dorival Caymmi, um ser especial, sublime, sem igual, que tão bem exprime, e de forma tão natural, a gente simples do litoral.

A violência no trânsito continua monstruosa e homérica, com veículos guiados por gente colérica e histérica, em má condição etílica e com teor alcoólico compatível com a máquina, numa mistura fatídica que, enfim, obtém repercussão jurídica, com a Lei Seca. Pra diminuir essa taxa de mortalidade trágica, quase bélica, agora quem seca a caneca vai de táxi, como Angélica.

Nos caminhos da vida, somos estimulados, desde pequenos, a competir. Compete a nós aceitar ou não. De um jeito ou de outro, como em tudo na vida, paga-se um preço, maior no primeiro caso. Em todo caso, não importa o quanto importa. O importante é não competir. Discordo de uma antiga musiquinha de Natal que dizia: “Quero ver você não chorar, não olhar pra trás nem se arrepender do que faz”. Chorar, olhar pra trás e se arrepender do que faz não faz mal e, às vezes, é fundamental. Chorar por sentir, olhar pra trás para ajudar, arrepender-se para reparar e, como maior presente, aos outros fazer-se presente, a si mesmo, viver o presente, renovando, diariamente, o simples desejo de um feliz dia novo para todos.

“A vida é aquilo que acontece enquanto planejamos o futuro” (John Lennon).



Simples Desejo (Daniel Carlomagno e Jair Oliveira)

Que tal abrir a porta do dia
Entrar sem pedir licença
Sem parar pra pensar
Pensar em nada

Legal ficar sorrindo à toa
Sorrir pra qualquer pessoa
Andar sem rumo na rua

Pra viver e pra ver
Não é preciso muito não
Atenção, a lição
Está em cada gesto

Tá no mar, tá no ar
No brilho dos seus olhos
Eu não quero tudo de uma vez
Eu só tenho um simples desejo

Hoje eu só quero que o dia termine bem
Hoje eu só quero que o dia termine muito bem

11.12.08

No seu tempo

Costuma-se dizer que alguém está à frente de seu tempo quando se quer destacar seu vanguardismo. O polêmico cantor Cazuza parecia não estar nem à frente nem atrás, mas no seu tempo. Tempo de contradições e conflitos, ilusões e desilusões, em que vimos a volta da democracia (pós-Riocentro), mas com eleições indiretas (pré-Collor); um presidente que foi eleito, mas não assumiu; o congelamento de preços, seguido da maior das inflações; uma seleção de futebol que encantou o mundo, mas não ganhou a copa; o surgimento da AIDS, pondo em risco os prazeres básicos da filosofia hippie, com exceção do rock’n roll.

Foi por meio desse prazer sem risco que ele traduziu tal estado de espírito, em frases como: meu cartão de crédito é uma navalha, minha metralhadora cheia de mágoas, mentiras sinceras me interessam, vejo um museu de grandes novidades, vivo num clipe sem nexo, meu prazer agora é risco de vida, meu partido é um coração partido.

2008 marca os 18 anos de morte e o cinqüentenário de nascimento de Cazuza. O cantor e compositor começou a carreira como vocalista do grupo Barão Vermelho, com quem lançou três discos, todos pela gravadora Som Livre, cujo diretor era seu pai, João Araújo. Desde o primeiro disco, já mostrou a que vinha e o reconhecimento de grandes nomes da MPB, que gravaram algumas de suas canções, mostrou que não vinha apenas por ser filho de um diretor de gravadora. Seu primeiro disco solo, "Exagerado", foi lançado ainda pela Som Livre e os quatro seguintes, pela gravadora Polygram.

Dos ilustres intérpretes de suas canções, fizeram parte Caetano Veloso (Todo amor que houver nesta vida), Ney Matogrosso (Pro dia nascer feliz), Gal Costa (Brasil), Simone, Luiz Melodia (Codinome beija-flor) e Marina Lima (Preciso dizer que te amo). Frejat, companheiro de banda, foi seu mais constante parceiro musical. Juntos, eles compuseram, entre outras, a música-tema de "Bete Balanço" - sucesso de bilheteria do cinema nacional nos anos 80. Cazuza compôs, também, em parceria com Rita Lee (Perto do fogo) e Gilberto Gil (Um trem pras estrelas, do filme homônimo de Cacá Diegues).

Naquela época, havia, ainda, pouca informação a respeito da AIDS e Cazuza, uma das vítimas desse desconhecimento, foi um dos primeiros brasileiros de fama reconhecida a tornar público que havia contraído a doença. Após a morte do cantor, Lucinha Araújo, sua mãe, criou a Sociedade Viva Cazuza, com o objetivo de prestar assistência a crianças carentes com AIDS.

Sobre o assunto, em matéria considerada desnecessária e apelativa, a revista Veja estampou, na capa da edição de 26 de abril de 1989, uma foto do cantor, já bastante debilitado pela doença, com o seguinte texto: “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. O impacto negativo provocado pela foto e pela matéria gerou carta de desagravo à revista, assinada por vários artistas e resposta do próprio compositor. Quem viu a chocante imagem, que não vale ser aqui reproduzida, decerto não a esqueceu.

Na década de 90, Cássia Eller dedicou um disco inteiro, "Veneno antimonotonia", às composições de Cazuza. Na mesma época, Lucinha Araújo publicou o livro "Cazuza – só as mães são felizes". Anos depois, ele teve sua trajetória de vida desde o começo da carreira artística mostrada no filme "Cazuza – o tempo não pára", de Sandra Werneck e Walter Carvalho, baseado no livro. Um filme marcante para quem viveu a época.

Se na vida pessoal foi figura polêmica, de comportamento pouco convencional, como cantor, Cazuza deveria ser avaliado por seu trabalho. Há quem não ache, e a quem não ache, sua canção responde por ele: "Não escondam suas crianças, nem chamem o síndico, nem chamem a polícia, nem chamem o hospício. Eu não posso causar mal nenhum, a não ser a mim mesmo, a não ser a mim" (Mal nenhum – Cazuza / Lobão).



Ideologia (Cazuza/Frejat)

Meu partido é um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah! eu nem acredito

Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Frequenta agora as festas do "Grand Monde"

Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver

O meu prazer agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Ah! saber quem eu sou

Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro

Meus heróis morreram de overdose
Meus inimigos estão no poder
Ideologia! Eu quero uma pra viver