20.7.08

Da missa um terço


Uma cerimônia que ocorre todos os anos no interior de Pernambuco, sob o sol forte do sertão, dentro da jurisdição de Januário, que vai de Salgueiro a Bodocó, resgata os verdadeiros e primordiais preceitos religiosos de negação ao que representa luxo, ostentação, superfluidade. O evento ocorre, mais precisamente, no Parque Estadual João Câncio, Sítio das Lajes, a cerca de 30 km da cidade de Serrita e a 577 km do Recife, desde 1970, sempre num domingo do mês de julho, a partir das 10 horas da manhã.

Trata-se da Missa do Vaqueiro, cerimônia idealizada por Luiz Gonzaga em homenagem ao vaqueiro Raimundo Jacó, seu primo, neto do véio zangado, que um dia pediu respeito a Januário e seus oito baixos. Hoje em dia, a reverência estende-se a todos os vaqueiros, ao próprio Luiz Gonzaga e também ao padre João Câncio, celebrante das primeiras edições da missa e um de seus organizadores, junto com Gonzagão. Além deles, também foi responsável pela criação da missa o poeta Pedro Bandeira, de Juazeiro do Norte, único dos três ainda vivo.

O acesso ao parque é difícil, o cenário, monótono, o transporte, precário. Os vaqueiros que vêm de longe chegam em paus-de-arara, enquanto seus cavalos são transportados por caminhões, das fazendas. Outros andam léguas a pé ou já chegam montados nos cavalos. Lotações fazem jus ao nome e passam lotadas sob a vista grossa de alguns fiscais das estradas. O caminho caminha, a dura paisagem dura e, de tão igual, permanece. Lembra um causo de Gonzaga que, ao voltar pro sertão, depois da fama, perguntou a um transeunte: “Daqui pra Exu é longe?”, ao que este respondeu: “Umas seis léguas” e completou: “Aqui pra nós, porque nesse carro aí não dá nem quatro”.

A celebração acontece no local onde Raimundo Jacó foi encontrado morto, em julho de 1954, supostamente assassinado. No início da cerimônia, vaqueiros entram a cavalo no chão de terra seca e batida, ao som de “A morte do vaqueiro”*, de Nelson Barbalho e Luiz Gonzaga (aquela do tengo lengo tengo), que homenageia Jacó. De início, o próprio Gonzagão cantava essa e outras músicas, assim como o Quinteto Violado, que, inclusive, gravou dois discos inspirados na cerimônia. Atualmente, cantores populares revezam-se na interpretação das canções.

No ofertório, momento mais bonito, os vaqueiros sucedem-se em direção ao altar e entregam ao padre, uma a uma, as várias partes de sua indumentária típica, como chapéu, gibão, perneira, sela, alforje e chocalho, ao mesmo tempo em que Pedro Bandeira explica, de forma poética, a utilidade de cada uma delas. Na comunhão, os vaqueiros repartem o queijo, a rapadura e o vinho. Um comovente ritual, em que as lágrimas iminentes nas peles ressequidas lembram a promessa de chuva na terra rachada e as mãos em prece confundem-se com os mandacarus da paisagem.

A exploração turística do evento, ainda que pequena, se por um lado proporciona um mínimo de infra-estrutura, por outro, tira um pouco de sua espontaneidade, conseqüência natural da simplicidade rica dos sertanejos, numa tentativa artificial de criar um espetáculo. Em alguns desses momentos teatralizados, por exemplo, uma espécie de chefe de cerimonial insiste para que os vaqueiros acenem com seus chapéus.

Numa região geralmente esquecida pelas autoridades, que não sabem da missa 1/3, é pertinente a denúncia de exploração política do ato, presente nos versos do cordel “Encontro de padre João com Raimundo Jacó no céu”, de Pedro Bandeira: “Da sua missa primeira / Todo sertão tem saudade / Hoje o governo aproveita / Pra fazer publicidade / Parece uma coisa boba / Que o progresso sempre rouba / A nossa felicidade”. Acontece, por exemplo, de políticos adentrarem o parque montados a cavalo, com chapéu de couro na cabeça e o séquito de vaqueiros seguindo-os.

A festa profana começa na sexta-feira anterior à missa e segue até o domingo, tendo como atrações, além das apresentações de artistas populares, as vaquejadas, rodas de forró - semelhantes às rodas de samba - e pegas de boi. Na ocasião, alguns jovens sertanejos, indiferentes à missa e seguindo o exemplo que chega das “terras civilizadas”, reúnem-se dia e noite, religiosamente, em um extenso conjunto de bares à beira da estrada onde, em vez de hosana, o som é nas alturas. Acordar com a passarada até se consegue, dormir ao som do chocalho é que é difícil...



* A Morte do Vaqueiro (Luiz Gonzaga / Nelson Barbalho)


Numa tarde bem tristonha
Gado muge sem parar
Lamentando seu vaqueiro
Que não vem mais aboiar
Não vem mais aboiar
Tão dolente a cantar

Tengo, lengo, tengo,
lengo, tengo, lengo, tengo
Ei, gado, oi

Bom vaqueiro nordestino
Morre sem deixar tostão
O seu nome é esquecido
Nas quebradas do sertão
Nunca mais ouvirão
Seu cantar, meu irmão

Tengo, lengo, tengo,
lengo, tengo, lengo, tengo
Ei, gado, oi

Sacudido numa cova
Desprezado do Senhor
Só lembrado do cachorro
Que inda chora sua dor
É demais tanta dor
A chorar com amor

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais um texto que me faz um bem danado. A missa do vaqueiro é lindíssima, mas, como tantas outras tradições do nosso estado, arrisca-se a perder a sua essência em troca de interesses imediatos (e bastante mesquinhos).
Além de ter acesso a esse texto tão bonito e verdadeiro, ainda relembrar o mestre Gonzagão e a leveza de sua imortalidade.