26.4.08

Bossa Nova: da cidade à eternidade

Na década de 50 do século passado, o Rio ainda disputava com São Paulo o título de maior cidade do Brasil, era a capital federal e um local de grande efervescência cultural. O país vivia um período de certa forma tranqüilo, de otimismo. Juscelino Kubitschek era o presidente, eleito pelo povo e ainda não havia lugar para as canções engajadas, que surgiriam poucos anos depois, no período da ditadura militar.

Foi nesse cenário, refletido na música, que surgiu a Bossa Nova, sem fazer barulho, em reuniões informais entre amigos, na zona sul carioca, de onde se propagou pelos meios universitários que, se por um lado sempre foram associados a uma postura de questionamentos e protestos (o que, ao contrário de Copacabana e Ipanema, não era a praia dos adeptos do movimento), por outro, sempre se mostraram abertos a novas idéias. Ainda não havia os Beatles (nem Rita Lee) e toda a sua influência mundial que, por aqui, deu origem à Jovem Guarda.

As canções falavam, sobretudo, de amor, felicidade, tristeza e tinham uma forma leve, contida, mesmo ao exprimirem sentimentos incontidos, manifestados em expressões como abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim; desesperadamente, eu sei que vou te amar; é impossível ser feliz sozinho ou tristeza não tem fim, felicidade, sim: os desafinados também têm um coração. A esse novo jeito de cantar, compor e tocar, tudo se encaixando perfeitamente, o compositor e pesquisador musical Luiz Tatit chamou de triagem estética, uma espécie de corte de excessos, o que tentarei analisar, metaforicamente, a seguir. 

É como se extraíssemos o mínimo múltiplo comum entre letra, música, interpretação e arranjo, obtendo como resultado canções leves, que pediam arranjos enxutos, interpretações discretas, vozes suaves, as quais contrastavam com a empostação de voz dos cantores de rádio das décadas anteriores, de prestígio diretamente proporcional ao vozeirão. A partir daí, rompeu-se a barreira do som, que se propagou em um espectro de vozes diversificadas, como o brilhante do brilhante Jobim, que, partindo a luz, explode em sete cores. Uma mudança de estação que nos levou do rei da voz à voz do rei, provocando um enorme impacto, cuja noção exata quem nasceu com tudo isto já consolidado jamais terá. 

As primeiras gravações bossa-novistas puderam ser escutadas em dois discos lançados em 1958: “Canção do amor demais”, de Elizeth Cardoso, com canções de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, que reproduziu, pela primeira vez, a diferente batida de violão de João Gilberto, em duas faixas, entre elas “Chega de Saudade” e um compacto simples do próprio João, com “Bim Bom”, música de sua autoria e, novamente, “Chega de saudade”.

A partir daí, o bolo cresceu e multiplicou-se, numa versão mais doce do bolo do crescimento que nos foi receitado alguns anos depois, à época do milagre econômico da ditadura, com a diferença de que os santos da Bossa Nova saíram de casa e fizeram milagre. Da primeira vez, era a cidade, da segunda, o cais e a eternidade: os maiores expoentes do movimento, Tom Jobim e João Gilberto, logo despertaram a atenção de vários países pelo mundo afora, atenção esta catalisada pela histórica apresentação no Carnegie Hall, em 1962, em Nova York, que foi, ao mesmo tempo, o ápice do reconhecimento e a base da disseminação para o resto do mundo.

A Bossa Nova foi o gênero musical brasileiro (com o perdão da palavra ao historiador e pesquisador musical José Ramos Tinhorão, que não a via como tal, mas como um movimento ou uma maneira de tocar) que alcançou maior sucesso internacional, com várias canções gravadas por músicos de outros países. “Garota de Ipanema” e “Chega de Saudade”, ambas de Tom e Vinícius, estão entre as músicas mais executadas e gravadas em todo o mundo. Da turma bossa-nova, também faziam parte Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Sylvia Telles, Roberto Menescal, Nara Leão e vários outros artistas.

É o que sei contar.

Atualmente, João Gilberto está em disputa judicial, iniciada há anos, com a gravadora EMI, que remasterizou, segundo ele sem autorização e com alteração, seus quatro primeiros discos - três LP`s e um compacto – transformados em uma coletânea (“O mito”) a que ele, com sua sensibilidade extremada, nas palavras do juiz de primeira instância, qualificou como mutilação de sua obra, pela mudança na capa, na seqüência das faixas, no corte de algumas músicas e mesmo em alterações no som. De cócoras com os sapos da minha terra, informo os dados para consulta ao processo na página do STJ: Número de Registro: 2006/0104444-2; Número do Processo: REsp 879680; UF:RJ. 

Como parte das comemorações dos 50 anos da Bossa Nova, completados em 2008, João Gilberto volta ao Carnegie Hall, em junho deste ano, para depois se apresentar em algumas capitais brasileiras: dias 14 e 15 de agosto em São Paulo, 24 de agosto no Rio e 5 de setembro em Salvador. Para não perder a piada, deixo um pedido a quem vai ou pretende ir: se vai, não beba; se beber, não vaie (não vale). Por fim, como consegui chegar ao final do texto sem fazer nenhum trocadilho com o “tom” de Jobim, achei-me com crédito para encerrá-lo assim, com uma frase feita num lugar comum: o resto é mar, é tudo que não sei contar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ah, obrigado pela visita e pelos elogios. Logo menos estarei com mais uma parte dos tais enigmáticos personagens.

Quanto aos seus textos, continuo assíduo. Adoro música brasileira e boa literatura.

Abraço