15.8.07

O controverso e a descanção


“A união de duas criaturas maravilhosas, mas com cabeças completamente diferentes, foi terrivelmente prejudicial pra o que nasceu dali”. Assim o fruto dessa união, Antônio José, o inventivo e original cantor e compositor Tom Zé, tenta explicar sua existência.

Nascido em Irará, sertão baiano, Tom Zé estudou música na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, onde também lecionou. Apesar da formação erudita, ele sempre criticou o excesso de seriedade dos músicos brasileiros e soube diluir tal erudição em boas doses de irreverência e espontaneidade. Ficou o erudito pelo não erudito. Na década de 60, conheceu os conterrâneos Caetano e Gil, com quem lançou, em 1968, o álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”, referência do Tropicalismo. Nesse mesmo ano, venceu o festival da TV Record com a canção “São São Paulo, meu amor” e lançou seu primeiro trabalho individual, com seu próprio nome no título.

Nos anos 70, continuou seguindo por trilhas alternativas e controversas, que provocaram seu afastamento involuntário da mídia, mesmo tendo produzido, então, trabalhos considerados inovadores como “Estudando o samba”, ou talvez por isso mesmo. Na década seguinte, lançou apenas um disco, “Nave Maria”, até que foi apresentado ao mundo pelo músico David Byrne, líder da banda americana Talking Heads que, em 1990, lançou a coletânea “The best of Tom Zé”. Depois desse debeste, nos anos que se seguiram, o cantor voltou a lançar discos com mais freqüência, bem como a ter seu valor reconhecido também no Brasil.

Nessa época, foi responsável por um dos melhores momentos da história do festival Abril pro Rock, no Recife, onde se apresentou em total empatia com o público, de início surpreendendo, depois envolvendo e por fim contagiando a platéia presente, jovem em sua maioria, com a criatividade de suas canções, a versatilidade de suas interpretações e a originalidade de suas mugangas e trejeitos multimídia.

Essa sua costumeira criatividade pode ser percebida de diversas maneiras em seu trabalho. Em títulos de canções como "Jimi renda-se" ou "Conto de fraldas", em letras como “Companheiro Bush” (“Se você sabe quem vendeu aquela bomba pro Iraque, desembuche. Eu desconfio que foi o Bush”) ou “Augusta, Angélica e Consolação” (“Augusta, graças a Deus, entre você e a Angélica eu encontrei a Consolação que veio olhar por mim e me deu a mão”), na utilização de instrumentos inventados por ele, em sua postura no palco e sobretudo no motivo condutor de suas obras.

Em seu disco “Jogos de armar – faça você mesmo”, de 2000, um CD auxiliar apresenta as canções como produtos de prateleira, não fechados, ou peças de um jogo de armar, que podem ser remontadas pela junção de fragmentos de arranjos, letras e músicas do CD principal. Para facilitar as experiências, combinações e reaproveitamentos, tais fragmentos são dispostos separadamente no CD auxiliar. Um lego musical que virou legado.

No elogiado LP “Estudando o samba”, lançado em 1976, quase todas as canções têm títulos monossilábicos: Mã, Toc, Tô, Vai, Ui, Doi, Mãe, Hein?, Só, Se. A última faixa, “Índice”, reúne todas essas palavras em uma só letra, fechando o repertório monótono, em que a mudança de Tom ocorre apenas na faixa “A felicidade”. Em “Defeito de fabricação” (1999), as canções são apresentadas como Defeito 1, Defeito 2, etc., enquanto em “Danç-Êh-Sá - Pós-Canção/Dança dos Herdeiros do Sacrifício/7 Caymianas para o Fim da Canção” (2006), elas são definidas como pós-canções ou descanções.

Algumas dessas armações do inventivo Tom Zé podem ser vistas no documentário “Fabricando Tom Zé”, de Décio Matos Júnior, eleito melhor documentário nos festivais de cinema do Rio de Janeiro e de São Paulo, pelo júri popular. O filme mostra cenas de palco e bastidores de suas apresentações em uma turnê pela Europa, em 2005, intercaladas por depoimentos do próprio Tom Zé, de sua esposa, Neusa Martins, de Arnaldo Antunes, David Byrne, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros.

Em um show é vaiado, em outros ovacionado e tudo é mostrado. Comenta sua mágoa com os conterrâneos Caetano Veloso e Gilberto Gil, que teriam se afastado dele após o movimento tropicalista e a volta do exílio, em sua época de reclusão involuntária, bem como um episódio ocorrido num carnaval de Salvador que homenageou o Tropicalismo. Segundo ele, filme só com coisa boa é um porre. Modesto, afirma que o fato de ser um péssimo músico ajudou-o a ficar à vontade pra experimentar, fugir aos padrões e fazer o que quisesse. Explicar pra confundir, confundir pra esclarecer. De fato, a cartilha por que ele reza é a do improviso, do jogo de palavras. Não tem papas na língua, seu oratório é outro e sua oratória idem.

Até mesmo batendo boca, o tom é o mesmo. Em certo episódio retratado no documentário, durante um ensaio, sem saber que sua equipe estava filmando, soltou um “vá pra porra!” em alto e bom som a um responsável pela equipe de som do festival de Montreux, na Suíça, por conta de sua má qualidade, sem se preocupar com o que ele entenderia com isso. Comentando o incidente depois, denunciou a má vontade e a discriminação que sofrem as nações subdesenvolvidas por parte dos países que, segundo ele, têm dinheiro mas não têm nosso talento e criatividade, nossos defeitos de fabricação, made in Brazil.