1.2.07

Rompendo as fronteiras dos jardins da razão


Em meio à apatia generalizada, metástase da impassibilidade em que se encontrava o Recife pós-golpe militar, quando pouco ou nada de novo conseguia emergir de seus becos, um grupo de amigos, liderados pelos músicos Chico Science e Fred Zero Quatro, reuniu-se, no início da década de 90, denunciando a estagnação, o vazio criativo e o depressivo quadro social em que viviam seus habitantes.

Suas idéias foram reunidas num tipo de manifesto, intitulado "Caranguejos com cérebro", no qual clamavam: "Um choque rápido ou o Recife morre de infarto", pela obstrução de suas artérias, a matança de seus rios e o aterramento de seus estuários. O texto falava do conceito de mangue, de sua importância para o equilíbrio ambiental e da cena musical que na cidade despontava, à qual eles deram o nome de manguebeat, ao mesmo tempo em que propunha uma saída, "para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos", através de uma mudança de atitude urgente: "Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.".

Chico Science criou a banda Nação Zumbi e Fred Zero Quatro, a Mundo Livre S/A. Após alguns shows em bares do Recife, ambos lançaram seus primeiros discos, "Da lama ao caos" e "Samba esquema noise", respectivamente, em 1994. Após se apresentarem na primeira edição do festival "Abril pro rock", que surgiu na mesma época, dividindo o palco com Gilberto Gil na canção "Macô", Chico Science e Nação Zumbi despertaram a atenção dos críticos para sua música. A mistura de sons da banda adveio, de forma natural, da formação musical de seus componentes, vindos parte de um grupo de rock, o Loustal (entre eles, o próprio Chico e o guitarrista Lúcio Maia), parte de um grupo de samba-reggae e outros ritmos afros, o Lamento Negro. Em 1996, lançaram o segundo disco, "Afrociberdelia".

A simbologia do mangue reproduzia bem as características do movimento, com sua diversidade de espécies representando a variedade de estilos, sua localização, entre o rio e o mar, entre a água doce e a salgada, equivalendo à mistura de ritmos e sua destruição representando o esvaziamento da alma da cidade. Seguindo o ímpeto tropicalista de misturar, o manguebeat tinha como imagem símbolo uma antena parabólica enfiada na lama do mangue. "Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão".

Nas letras, referências a revoltas e líderes populares, à concentração de riquezas, à discriminação, à fome e seus males, com citações à revolução praieira, a Antônio Conselheiro, Zumbi e Josué de Castro, este último espécie de ícone do manguebeat, com suas alusões ao "estranho mimetismo entre homens e caranguejos", tão bem representado por Chico Science nas canções e também no palco, em sua admirável e singular performance.

O fim do segundo milênio começava a despontar e uma pesquisa feita por um instituto da cidade de Washington – EUA, apontava o Recife como a quarta pior cidade do mundo para se viver, fato descrito por Chico Science em uma de suas canções. A cidade crescera rápida e desordenadamente. "A cidade não pára, a cidade só cresce. O de cima sobe e o de baixo desce". A exposição desses contrastes sociais e da dura realidade de uma "situação sempre mais ou menos, sempre uns com mais e outros com menos", contribuiu para que o manguebeat fosse bem melhor aceito na periferia, seu berço e fonte de inspiração.

A forte vibração vinda do mangue abalou um pouco as sólidas estruturas da sociedade conservadora recifense. Os respingos da lama nas varandas de seus apartamentos de luxo, qual "a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma", desagradaram aos assustados e aflitos burgueses, protegidos em suas casas fortes, os quais, diferentemente das populações ribeirinhas, que (sobre)vivem em "mocambos entulhados à beira do Capibaribe", sempre apreciaram o mangue à distância, do alto dessas varandas, com vista para o rio. O duro retrato de uma manguetown miserável ("Tô enfiado na lama / é um bairro sujo / onde os urubus têm casas / e eu não tenho asas") não caiu nas graças dos mais abastados que, embora na mesma cidade, viviam em outro mundo, tampouco lhes cheirou bem ("ninguém foge ao cheiro sujo da lama da manguetown").

A modernização da sonoridade, por sua vez, aproximou o movimento dos mais jovens, deixando os mais velhos bem reticentes, quando não exclamativos, à teoria de que "modernizar o passado é uma evolução musical". Concordando ou não com essa teoria, temos que reconhecer o papel fundamental de Chico Science na revalorização da tradicional cultura popular do estado, na revitalização do carnaval do Recife e de ritmos como o coco e o maracatu.

Pernambuco sempre se fechou um pouco em sua forte tradição de cultura popular, regional e, talvez por isso, tenha tido, nas últimas décadas, pouco acesso à mídia, infelizmente cada vez mais globalizada (Alceu Valença, pioneiro, no estado, na mistura de rock com ritmos locais, foi uma das raras exceções). Chico Science e Nação Zumbi quebraram um pouco essa separação, modernizando a música regional, aproximando-a dos mais jovens e abrindo as portas para que outros músicos e grupos, que vieram em seus rastros, conseguissem mais espaço, quer seguindo a mistura e diversidade de estilos do manguebeat, quer não. Nomes como Otto, ex-Mundo Livre S/A; Siba Veloso, ex-Mestre Ambrósio; Silvério Pessoa, ex-Cascabulho; as bandas Devotos e Faces do Subúrbio e, mais recentemente, Cordel do Fogo Encantado e Mombojó.

Chico Science faleceu precocemente, aos trinta anos, em um acidente de carro, num domingo, dia 2 de fevereiro de 1997, dia de Iemanjá, entre o mangue e a praia, entre a lama e o caos, entre o rio e o mar, entre Recife e Olinda, entre rios, pontes e overdrives. Há dez anos. Seus preceitos de liberação da mente, expansão da consciência e tudo o mais que faça alguém ficar pensando melhor, continuam bem vivos e em sintonia com os anseios de quem está sempre à busca de romper as fronteiras dos jardins da razão.

2 comentários:

Anônimo disse...

Apesar de não ser amante da linha melódica do movimento manguebeat não posso deixar de reconhecer a importância social do trabalho de Chico Science, tão precocemente arrancado à sua enorme capacidade criativa. Seu texto é claro e conciso, induzindo-nos à reflexão sobre qual tem sido a nossa participação nesta questão das diferenças sociais que tem mostrado a sua cara mais cruel nos últimos acontecimentos envolvendo uma violência que, há muito, escapou do controle das instituições oficiais. Aparecerei mais vezes por aqui. Continue firme e forte. Abraços, Faviana

Anônimo disse...

paaaaalo danaaado, tu sabe escrever sobre tudo hein!!!