15.2.07

Cem e sem anos do frevo


“Ô, ô, saudade, saudade tão grande ...” (Antônio Maria) - A despeito de uma limitada divulgação nacional nos dias atuais, o frevo já viveu uma época de ouro, quando tocava e era tocado em todo o país, contando com o apoio de uma gravadora pernambucana, a Rozenblit, especialista em lançamentos do gênero, que saíam aos montes e com qualidade, principalmente quando o carnaval se aproximava. Compositores como Antônio Maria, Nelson Ferreira, Capiba e Edgar Moraes criavam canções que reverenciavam seus blocos preferidos e a eles declaravam amor fiel. Em algumas, prostituíam-se, declarando-se a vários ao mesmo tempo, como em “Valores do passado”, uma escalação do dream-team dos blocos de frevo, alguns deles ainda em atividade, como o “Bloco das flores”, fundado em 1921.

“Saudade que eu sinto do Clube das Pás, do Vassouras, passistas traçando tesouras nas ruas repletas de lá” (Antônio Maria) - Se a dança é derivada dos passos da capoeira, inventados pelos negros, a sonoridade e o instrumental são atribuídos a bandas marciais. Os primeiros clubes de frevo, como o “Clube das pás”, o “Vassourinhas” e o “Lenhadores”, datam do final do século XIX e continuam existindo até hoje. Como não se sabe ao certo quando a festa começou, escolheu-se, recentemente, como data de criação do frevo, o dia 9 de fevereiro de 1907, quando registrou-se a primeira referência à dança com este nome.

“Pode acabar o petróleo, pode acabar a vergonha, pode acabar tudo enfim, mas deixem o frevo pra mim” (Capiba) - No ano de seu centenário, o frevo foi registrado como patrimônio cultural imaterial do país, no livro das formas de expressão. Entre as características que justificaram tal registro, estão sua riqueza e simplicidade, singularidade e diversidade, e seu caráter libertário de resistência, a princípio apenas social, posto que surgiu entre os negros recém-libertados e, posteriormente, também cultural, diante da globalização do mercado musical.

“É lindo ver o dia amanhecer com violões e pastorinhas mil...” (Getúlio Cavalcanti) - O frevo é dividido em três gêneros principais. O frevo-de-rua é instrumental, executado por orquestras de metais e é o mais vivaz e ligeiro. Quando ganhou letra, virou frevo-canção, o mais abrangente e variado. O frevo-de-bloco, por sua vez, tem um ritmo mais suave e é geralmente executado por um coral de vozes femininas, acompanhado por uma orquestra de instrumentos de pau e corda.

“É de fazer chorar quando o dia amanhece e obriga o frevo a acabar ...” (Luiz Bandeira) - O processo de aculturação e discriminação por que passou Pernambuco com o golpe militar, refletiu, também, ou sobretudo, na área cultural, abandonada nos anos que se seguiram. O carnaval do Recife foi sumindo aos poucos, até chegar, ao final da década de 70, praticamente morto, restrito às comunidades. Blocos tradicionais de frevo, maracatu e caboclinho dispunham de pequena subvenção e desfilavam para um mirrado público no centro da cidade.

“Ei pessoal, vem moçada, carnaval começa no Galo da Madrugada” (José Mário Chaves) - Diante deste quadro, em 1979, fundou-se o “Clube de Máscaras Galo da Madrugada”, na intenção de reviver os velhos carnavais pernambucanos. O bloco foi, durante muito tempo, o único do carnaval recifense a atrair um grande público, crescente a cada ano. Hoje, embora não seja mais o único a cantar, o Galo segue seu grandioso desfile nos bairros de São José e Santo Antônio, abrindo o carnaval, no sábado de Zé Pereira, acompanhado por uma multidão.

“Entre confetes e serpentinas venho te oferecer com alegria o meu amor ...” (Clídio Nigro / Clóvis Vieira) - Ao mesmo tempo, Olinda virou reduto de resistência à dissolução das manifestações culturais do carnaval pernambucano. Blocos irreverentes foram criados, com nomes e hinos fazendo referência à situação política do país, como: “Eu acho é pouco”, “Siri na lata” e “Nóis sofre mais nóis goza” (este último no Recife), que se juntaram a blocos tradicionais da cidade como “Pitombeira dos Quatro Cantos”, “Elefante de Olinda” e aos seus tradicionais bonecos gigantes. O título de patrimônio cultural da humanidade, recebido pela cidade em 1982, contribuiu para dar maior visibilidade aos festejos nesta cidade.

“Batidas de bombos são maracatus retardados, chegando à cidade cansados, com seus estandartes no ar” (Antônio Maria) - Um evento conseguiu atravessar, incólume, o marasmo em que se encontrava o carnaval do Recife, tornando-se uma de suas maiores referências na mídia: a “Noite dos Tambores Silenciosos”, cerimônia que reproduz o ritual de escravos, suas preces e loas em busca de proteção, e reúne as mais tradicionais nações de maracatu de baque-virado, entre elas algumas fundadas ainda na época do império, antes da abolição da escravatura, como o “Nação Elefante”, de 1800 e o “Leão Coroado”, de 1863. Tais maracatus têm como características as figuras do rei e rainha, a religiosidade e os ritmos percussivos, de influência negra, bastante ligados à resistência da raça à situação vigente na época.

“Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu ...” (Caetano Veloso) - A inclusão de instrumentos eletrônicos nas orquestras foi viabilizada com a invenção do trio elétrico, quando compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Moraes Moreira deram nova energia ao ritmo. Mas, se em Pernambuco o frevo era ligado aos antigos carnavais e pouco se produzia de novo, o ritmo foi perdendo espaço também na Bahia, com o surgimento do samba-reggae e da axé-music, no início dos anos 90.

“Vem fazer parte desse cordão, Recife tem um lugar pra você dentro do coração” (Sérgio Andrade / Zezinho Franco) - Na década de 80, contribuíram para o ressurgimento do carnaval recifense as apresentações da Banda de Pau e Corda na praia de Boa Viagem e o projeto “Asas da América”, do compositor Carlos Fernando, que tentou recuperar a vivacidade e a energia de um frevo que vinha perdendo as forças e incentivou uma nova geração de artistas a compor e interpretar frevos-canção, entre eles Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho.

“Modernizar o passado é uma evolução musical” (Chico Science) - Em meados da década passada, dois outros fatores possibilitaram a revalorização da cultura popular pernambucana: a revitalização do outrora abandonado bairro do Recife, a qual viabilizou uma estrutura mais profissional, necessária ao evento e o rufo dos tambores, o eco das alfaias, a repercussão da percussão de Chico Science e Nação Zumbi, que se uniu ao som dos clarins de momo. Também passaram a receber mais atenção e destaque antigas manifestações culturais do interior do estado, como o maracatu rural, de Nazaré da Mata; os papangus, de Bezerros; os caboclinhos, de Goiana e os caretas, de Triunfo.

“Quero sentir a embriaguez do frevo, que entra na cabeça, depois toma o corpo e acaba no pé ...” (Luiz Bandeira) - O nome frevo vem de ferver e quem ouve os gritos e pulos da multidão, parecendo pessoas em ebulição logo aos primeiros acordes de “Vassourinhas”, espécie de hino do carnaval pernambucano, entende bem o porquê. A música faz uso de requintes de crueldade: começa de repente, sem introdução, sem preparar os corações dos pobres foliões e segue divertindo-se com a surpresa e as conseqüentes perdas de controle e compostura dos mesmos, presas fáceis, indefesas, vítimas emocionadas, enlouquecidas. Doidos varridos por vassourinhas que levantam a poeira e seguem causando impacto, bagunçando tudo, lavando suas almas, até terminarem a faxina, com a sensação do dever cumprido.

“E frevo ainda, apesar da quarta-feira, no cordão da saideira, vendo a noite se enfeitar ...” (Edu Lobo).

1.2.07

Rompendo as fronteiras dos jardins da razão


Em meio à apatia generalizada, metástase da impassibilidade em que se encontrava o Recife pós-golpe militar, quando pouco ou nada de novo conseguia emergir de seus becos, um grupo de amigos, liderados pelos músicos Chico Science e Fred Zero Quatro, reuniu-se, no início da década de 90, denunciando a estagnação, o vazio criativo e o depressivo quadro social em que viviam seus habitantes.

Suas idéias foram reunidas num tipo de manifesto, intitulado "Caranguejos com cérebro", no qual clamavam: "Um choque rápido ou o Recife morre de infarto", pela obstrução de suas artérias, a matança de seus rios e o aterramento de seus estuários. O texto falava do conceito de mangue, de sua importância para o equilíbrio ambiental e da cena musical que na cidade despontava, à qual eles deram o nome de manguebeat, ao mesmo tempo em que propunha uma saída, "para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos", através de uma mudança de atitude urgente: "Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.".

Chico Science criou a banda Nação Zumbi e Fred Zero Quatro, a Mundo Livre S/A. Após alguns shows em bares do Recife, ambos lançaram seus primeiros discos, "Da lama ao caos" e "Samba esquema noise", respectivamente, em 1994. Após se apresentarem na primeira edição do festival "Abril pro rock", que surgiu na mesma época, dividindo o palco com Gilberto Gil na canção "Macô", Chico Science e Nação Zumbi despertaram a atenção dos críticos para sua música. A mistura de sons da banda adveio, de forma natural, da formação musical de seus componentes, vindos parte de um grupo de rock, o Loustal (entre eles, o próprio Chico e o guitarrista Lúcio Maia), parte de um grupo de samba-reggae e outros ritmos afros, o Lamento Negro. Em 1996, lançaram o segundo disco, "Afrociberdelia".

A simbologia do mangue reproduzia bem as características do movimento, com sua diversidade de espécies representando a variedade de estilos, sua localização, entre o rio e o mar, entre a água doce e a salgada, equivalendo à mistura de ritmos e sua destruição representando o esvaziamento da alma da cidade. Seguindo o ímpeto tropicalista de misturar, o manguebeat tinha como imagem símbolo uma antena parabólica enfiada na lama do mangue. "Pernambuco debaixo dos pés e a mente na imensidão".

Nas letras, referências a revoltas e líderes populares, à concentração de riquezas, à discriminação, à fome e seus males, com citações à revolução praieira, a Antônio Conselheiro, Zumbi e Josué de Castro, este último espécie de ícone do manguebeat, com suas alusões ao "estranho mimetismo entre homens e caranguejos", tão bem representado por Chico Science nas canções e também no palco, em sua admirável e singular performance.

O fim do segundo milênio começava a despontar e uma pesquisa feita por um instituto da cidade de Washington – EUA, apontava o Recife como a quarta pior cidade do mundo para se viver, fato descrito por Chico Science em uma de suas canções. A cidade crescera rápida e desordenadamente. "A cidade não pára, a cidade só cresce. O de cima sobe e o de baixo desce". A exposição desses contrastes sociais e da dura realidade de uma "situação sempre mais ou menos, sempre uns com mais e outros com menos", contribuiu para que o manguebeat fosse bem melhor aceito na periferia, seu berço e fonte de inspiração.

A forte vibração vinda do mangue abalou um pouco as sólidas estruturas da sociedade conservadora recifense. Os respingos da lama nas varandas de seus apartamentos de luxo, qual "a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma", desagradaram aos assustados e aflitos burgueses, protegidos em suas casas fortes, os quais, diferentemente das populações ribeirinhas, que (sobre)vivem em "mocambos entulhados à beira do Capibaribe", sempre apreciaram o mangue à distância, do alto dessas varandas, com vista para o rio. O duro retrato de uma manguetown miserável ("Tô enfiado na lama / é um bairro sujo / onde os urubus têm casas / e eu não tenho asas") não caiu nas graças dos mais abastados que, embora na mesma cidade, viviam em outro mundo, tampouco lhes cheirou bem ("ninguém foge ao cheiro sujo da lama da manguetown").

A modernização da sonoridade, por sua vez, aproximou o movimento dos mais jovens, deixando os mais velhos bem reticentes, quando não exclamativos, à teoria de que "modernizar o passado é uma evolução musical". Concordando ou não com essa teoria, temos que reconhecer o papel fundamental de Chico Science na revalorização da tradicional cultura popular do estado, na revitalização do carnaval do Recife e de ritmos como o coco e o maracatu.

Pernambuco sempre se fechou um pouco em sua forte tradição de cultura popular, regional e, talvez por isso, tenha tido, nas últimas décadas, pouco acesso à mídia, infelizmente cada vez mais globalizada (Alceu Valença, pioneiro, no estado, na mistura de rock com ritmos locais, foi uma das raras exceções). Chico Science e Nação Zumbi quebraram um pouco essa separação, modernizando a música regional, aproximando-a dos mais jovens e abrindo as portas para que outros músicos e grupos, que vieram em seus rastros, conseguissem mais espaço, quer seguindo a mistura e diversidade de estilos do manguebeat, quer não. Nomes como Otto, ex-Mundo Livre S/A; Siba Veloso, ex-Mestre Ambrósio; Silvério Pessoa, ex-Cascabulho; as bandas Devotos e Faces do Subúrbio e, mais recentemente, Cordel do Fogo Encantado e Mombojó.

Chico Science faleceu precocemente, aos trinta anos, em um acidente de carro, num domingo, dia 2 de fevereiro de 1997, dia de Iemanjá, entre o mangue e a praia, entre a lama e o caos, entre o rio e o mar, entre Recife e Olinda, entre rios, pontes e overdrives. Há dez anos. Seus preceitos de liberação da mente, expansão da consciência e tudo o mais que faça alguém ficar pensando melhor, continuam bem vivos e em sintonia com os anseios de quem está sempre à busca de romper as fronteiras dos jardins da razão.