30.1.22

BÁRBARAS (rap hour)

 

E foi assim que invadiram este país
Em busca de vantagem e riqueza
A injustiça na pátria fincou raiz
Em terras apartadas dos nativos
Saquearam, dizimaram suas tribos
E doaram seu rincão à burguesia
Minoria que crescia e prosperava
Às custas de mão de obra escrava
Um futuro sombrio se desenhava
Um país desumano se engendrava
Eis que a consequência não tardava
...

Quem não deve, não teme
Diz aquele velho ditado
Porém vida de favelado
Não tem essa fantasia
Não tem hora, nem dia
Se deve ou se não deve
Só o preto é alvejado
O alvo nunca é o alvo
Negro é marginalizado
Oprimido, discriminado
Deixemos de hipocrisia

Menos favorecido, não menos capaz
Me coloque lado a lado, não me coloque atrás

Entre becos e vielas a cena se repetia
O menino na porta de casa se distraía
Revista, tira em quadrinhos, só alegria
Blitz em revista e era uma vez a utopia
O tira se arma de ira, tira a arma e atira
Atinge o sonho da criança que sorria
A bola perdida, a bala de gude, agonia
E seu sonho com o sangue se esvaía
Era uma vez o faz de conta, covardia
Esperança era a primeira que morria
E no final, moral da história não havia

Não nasci em berço de ouro
Pois berço não é medalha
Medalha eu mesmo conquisto
E é com luta, dor e batalha
Não ganho de mão beijada
Justiça que tarda e falha
Mas não sou fogo de palha
Dou duro desde moleque
Moleque criado na vida
Remando contra a maré
Com esperança, força e fé

Menos favorecido, não menos capaz
Me coloque lado a lado, não me coloque atrás

Destino traçado a quinhentos anos
E assim chegamos onde estamos
Será que chegamos ou só ficamos?
São outros quinhentos, convenhamos
É pouco o quinhão que me foi dado
E o que conquisto tem incomodado
Se não me querem na página ao lado
Viro a página, reescrevo, desagrado
A realidade em um roteiro adaptado
Um novo enredo, revisto, repaginado
Multiversos em sentido refigurado

Parece e é preconceito que se renda
Só o caro cidadão que não tem renda
Mas não é nada que me surpreenda
Tampouco é vitimismo, compreenda
Nem caso isolado, lamúria, lamento
Nada, estou farto desse julgamento
Não me venha com falso argumento
Dedo em riste, grito, vozes ao vento
Respeite nossa cor, nosso trauma
E se me faz favor, não peça calma
a quem é julgado pela pele, não pela alma

Menos favorecido, não menos capaz
Me coloque lado a lado, não me coloque atrás

14.8.21

Vida pós-confinamento

- Desce? Pergunto, ao abrir-se a porta do elevador. 

Prisioneiro liberto. Como no mito da caverna, entre sombras e perspectivas, um novo mundo descortina-se aos olhos de minha irrelevância, na justa medida de minha insignificância, da qual tinha perdido a consciência.

Numa nova relação tempo-espaço, vivo(,) em estado de contemplação, um ciclo de (in)tensa quietude. Com tempo, contemplo. Reflito sobre meu reflexo e reflito em minha reflexão.

Como no Big Bang, passo do átomo ao cosmos, do infinitésimo ao infinito, do enquadramento ao céu aberto, do ponto ao universo em expansão. 

Num novo nível de consciência, refuto pensamentos negativos, busco respostas libertadoras, elucido mistérios não revelados.

- Sobe? Pergunto ao retornar. Meu corpo sobe no elevador. Meu espírito já se encontra elevado.

8.3.21

A esses seres humanos

A Amélia, mulher de verdade, que me deixou saudade. A Geni, mulher de verdade e um poço de bondade. A Bárbara, que amar nunca é demais. A Conceição, de quem me lembro muito bem. A Marina, de quem estou de mal. À tigresa, de íris cor de mel. A Carolina, menina bem difícil de esquecer, de olhos fundos, que não viu o tempo passar na janela porque foi pro samba, pra dançar o xenhenhém.

A Beatriz, que não me deixa entrar na sua vida. À deusa da minha rua, à dona da minha cabeça. À preta, pretinha, à pérola negra, à magrelinha. À malandrinha, rainha dos meus sonhos, que demorou, mas chegou e minha vida transformou. À moça bonita, à mais bonita. A essa mulher, àquela mulher. À violeira, caprichosa e nordestina, à paraíba masculina. À namorada: a minha, a de um amigo meu ou a que tem namorada.

A Luciana, sorriso de menina, nos olhos de mar. A Madalena, meu bem querer, que foi pro mar e me deixou a ver navios. À morena dos olhos d’água, que não tira os seus olhos do mar, nem vê que a vida ainda vale o sorriso que eu tinha pra lhe dar, mas a Rita levou. A Rita que levou meu sorriso e a Irene que o trouxe de volta.

A Rosa, Rosinha, de quem me recordo, olhando a chuva, que guarda consigo meu coração e embora divina e graciosa, e com andar de moça prosa, ou talvez por isso, arrasa o meu projeto de vida (eu, hein, Rosa!). À Maria vai com as outras, à Maria de verdade. A Maria, que mistura a dor e a alegria, que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta. Que sobe o morro e não se cansa, lata d’água na cabeça e uma força que nunca seca.

A Eva, que me dá força pra viver e me abraça por um instante. A Iolanda, com quem quero morrer e ficar, eternamente. À morena de Angola ou a tropicana. A Tereza da praia, que não é de ninguém. À moça bonita da praia de Boa Viagem, à morena de Itapoã, à garota de Ipanema. Às mulheres de Atenas, que têm medo apenas. À bailarina que não tem. À mulher de fases.
Às três meninas do Brasil, de simpatia mulata. À menina veneno, que tem um jeito sereno. À menina do Lido, que eu conheço não sei de onde. À alegre menina, a quem chamei de rainha. À pobre menina, que não tem ninguém. À menina que mora na ladeira e à que carreguei no colo.

A você, que não está entendendo nada do que eu digo, a você, que tirou partido de mim, a você, que não serve pra mim, a você, que é tudo pra mim, a você, que precisa saber de mim, a você que eu não conheço mais.

A Kátia Flávia, Anna Júlia, Lady Laura, Sá Marina, titia Amélia, Adelaide, Alice, Camila, Diana, Anália, Dora, Maricotinha, Laura, Helena, Vera, Solange, Sandra, Sílvia, Lígia, Lia, Tereza, Luzia, Luíza, Sandra Rosa Madalena, Clara, Ana e quem mais chegar.

Às mulheres de João, de vida e morte severinas: Juliana, de José e João; Maria Lúcia, de Jeremias e João; Joana, que errou de João. Às mulheres de todas as cores, de várias idades e muitos amores. Enfim, à mulher, sempre mulher, este ser superior, sempre a me ensinar como ser humano e não como ser vivo, minha eterna admiração.



3.12.12

Orações descoordenadas e insubordinadas para todos os períodos – sexta edição

(Não se preocupe, isso passa, é só uma frase)

O mar está pra peixe, assim como o peixe está pra Neymar. No mar, o peixe balança a rede. No peixe, Neymar balança a rede.”

Instrumentos de prazer: junto a teu corpo... violão, meu coração mais forte... bateria.”

Para os juízes de futebol, a prostituição é uma mãe na roda.”

Um quarto dividido por dois, se não dá um oitavo, dá em casamento.”

O que dá prazer, falo. O que provoca dor, calo.”

A especulação imobiliária e a construção civil estão sempre fazendo algo de concreto contra a natureza e o meio-ambiente.”

Para se descobrir, não há que se despir de cobertas, mas que se cobrir de coragem.”

Num centro de convenções, novos costumes nunca entram em exposição.”

11/09 - EUA, a impotência elevada à máxima potência. A impotência é levada à máxima potência, os EUA. Elevada impotência da máxima potência.”

Uns Senado, outros sem nada.”

Em baralho de eunuco, paus é mesmo que ouros.”

Por recusar sexo oral e beijo de língua portuguesa, foi traído pela palavra.”

Até o período pré-socrático, o calcanhar era tido como ponto fraco.”

Seja dura ou seja leve, a vida dura até que a morte leve.”

O caminho das pedras também é feito de pedras no caminho.”

Só há uma saída para a crise na zona do Euro - diz Monti.”

O primeiro mundo tá quase sem fundo, devendo a Deus e ao mundo, principalmente ao segundo.”

Há males que vêm pra bem, há bens que vêm pra malas...”

Uma vida leve dura. Uma vida leve, não dura. Uma vida dura não dura. Uma vida dura, não leve. Não leve uma vida dura. Leve uma vida leve.”

Desapropriação indébita: a posse é possível se a terra é terrível.”
 

9.11.12

Trajetórias opostas sem jamais deixar de se olhar

Gonzaga - de pai pra filho*, de Breno Silveira (Dois filhos de Francisco, À beira do caminho), é mais uma merecida homenagem a Luiz Gonzaga, no ano de seu centenário. Com um competente elenco, o filme enfoca a vida do nosso mestre desde a adolescência e percorre toda sua carreira - o começo difícil, o auge, o ostracismo e a volta, com destaque para seu relacionamento conturbado com o filho Luiz Gonzaga Júnior.

O nascimento do filho, em 1945, coincidiu com outros eventos de grande importância e mesmo determinantes na vida futura de Luiz Gonzaga, desde a gravação dos primeiros discos como cantor, até o encontro com Humberto Teixeira, com quem criaria o baião, ritmo que dominaria o cenário da música brasileira até o surgimento da bossa nova, em 1958. Gonzaga viu-se, então, entre a carreira - incipiente, mas ascendente - e a criação do filho, cuja mãe morrera precocemente. Sem poder cuidar dos dois, optou pela carreira, com o pensamento de viabilizar, mais pra frente, a dupla responsabilidade, o que, por uma série de fatores, e entre uma e outra tentativa malsucedida, nunca vingou. O menino foi criado no morro de São Carlos pelos padrinhos, Dina e Henrique, casal de amigos que recebera seu pai no Rio de Janeiro.

O fato de terem crescido em ambientes e culturas tão díspares só realçou as diferenças entre pai e filho, o que, aliado a uma natural denegação da influência do primeiro sobre o segundo, refletiu-se na música deste, bastante desvinculada do viés nordestino da música daquele. Outra diferença: Gonzaguinha compunha quase sempre só, Gonzaga, quase sempre não. Em comum, o talento para a música, transmitido de pai pra filho.

A música de Luiz Gonzaga e seus parceiros carrega a emoção mais contida do sertanejo, o falar cantando, o aboio em forma de canção, o norte. Quer em ritmo de alegria, leveza ou ingenuidade com um toque de malícia, quer em tom de introspecção, lamento, saudade ou resignação, os sentimentos e comportamentos são sempre confrontados com elementos comuns à realidade sertaneja, voltados àquele microuniverso, por meio de linguagem própria e bem peculiar:

Mandacaru quando fulora na seca / é o sinal que a chuva chega no sertão / toda menina que enjoa da boneca / é sinal de que o amor já chegou no coração”, “Assum preto, meu cantar / é tão triste como o teu / também roubaram o meu amor / que era a luz, ai, dos olhos meus”, “Saudade assim faz roer e amarga que nem jiló”, “Quando a ribaçã de sede / bateu asas e voou / foi aí que eu vim me embora / carregando a minha dor”, “Ai, juazeiro / ela nunca mais voltou”, “Tendo um coração vazio / vivo assim a dar psiu / sabiá vem cá também”, “Quando o verde dos teus olhos se espalhar na plantação...

A música de Gonzaguinha é urbana e reflete o ritmo de vida acelerado, de emoções exacerbadas, o cantar falando, verbos soltos em desabafo, o desnorte. Expõe nossas limitações e os limites a que somos expostos diante desse quadro, de forma incisiva: “não dá mais pra segurar, explode coração”, “só sinto no ar o momento em que o copo está cheio e que já não dá mais pra engolir”, “coração na boca, peito aberto, vou sangrando”. Não por um linguajar contundente, mas pelo caráter autobiográfico, Com a perna no mundo** tem forte carga emocional e beleza redobrada.

Ao mesmo tempo, e em contraponto, Gonzaguinha destila versos doces, como em Espere por mim, morena ou Diga lá, coração e mensagens afirmativas: “eu acredito é na rapaziada / que segue em frente e segura o rojão”, “eu sei que a vida devia ser bem melhor e será”, “fé na vida, fé no homem, fé no que virá”, “eu apenas queria que você soubesse que aquela alegria ainda está comigo”. Maria Bethânia, Simone e Elis Regina foram suas melhores intérpretes.

Posicionamento político era outra diferença visível entre pai e filho. Gonzaga Jr. pertence a uma geração cujo fim da adolescência coincide com o início do período de ditadura militar no Brasil. Durante a faculdade, iniciou seu engajamento político, junto com sua carreira musical, ao participar do movimento artístico universitário (MAU), ao lado de Ivan Lins, Aldir Blanc e outros. O movimento prosperou e, no início dos anos 70, gerou como frutos disco e programa de tv (Som Livre Exportação). Logo depois, Gonzaguinha lançou seu primeiro LP, que incluía Comportamento geral, sua irônica e mais conhecida canção de protesto (“Você merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal / Cerveja, samba e amanhã, seu Zé / Se acabarem com teu carnaval?”).

O filme faz uma retrospectiva da vida de Luiz Gonzaga, tomando por base um depoimento real do rei do baião a Gonzaguinha. Num interessante recurso, os momentos mais importantes de suas carreiras são mostrados ora em cenas filmadas, ora em imagens reais, culminando com o primeiro encontro entre pai e filho no palco, num show em 1981, cantando Vida de viajante. A volta de Gonzaga a Exu, depois da fama, por tantas e brilhantes vezes contada e cantada por ele, é bem ilustrada no filme, bem como sua boa relação com o pai Januário e a grande influência deste em sua carreira.

Um Luiz, outro Luiz. Quase partiram juntos. Um luz, outro reluz. Não importa que Exu e São Carlos não sigam a mesma doutrina, que a longa avenida de gás neon não se encontre com a estrada de Canindé ou que o riacho do navio não deságue no lindo lago do amor. Nesse imenso salão ou numa sala de reboco, num pé de serra pernambucano ou num morro carioca, no sertão ou perto do mar, a essência da arte é a mesma: vida (e vice-versa). E essas duas, particularmente, os seguintes versos de Gonzaguinha parecem, por simples acaso, definir com precisão: “Para quem bem viveu o amor, duas vidas que abrem não acabam com a luz. São pequenas estrelas que correm no céu, trajetórias opostas, sem jamais deixar de se olhar”.


*


**

27.10.12

Receita de doces bárbaros

Chico e Bethânia, Caetano e Chico, Luiz Gonzaga e Fagner, Elis e Tom, Pessoal do Ceará (Ednardo, Amelinha e Belchior), Vinícius, Maria Medalha e Toquinho, a música brasileira já nos brindou com memoráveis encontros, em geral ao vivo, a maioria em dupla, alguns em trio. Afora obras coletivas como Tropicália ou Panis et circensis e Clube da esquina, há, também, outros trabalhos reunindo mais do que três artistas, como O Grande encontro (Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Elba e Zé Ramalho), Cantoria (Elomar, Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo), Tom . Vinícius . Toquinho . Miucha e Doces bárbaros, formação musical que uniu, em 1976, Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Os quatro amigos baianos reuniram-se, em trabalhos conjuntos, por várias vezes. Caetano, que iniciara a carreira com Gal, em Domingo, viria juntar-se a Bethânia, num disco ao vivo (1978), a Gil, em Barra 69 e Tropicália 2 (1993) e a Gil e Gal no disco Temporada de verão - ao vivo na Bahia (1974). Sem Gal e com Bethânia, os dois compositores dividiram microfones e juntaram vozes com João Gilberto, em Brasil (1981). Já na citada obra coletiva que marcou o tropicalismo (Tropicália ou Panis et circensis), dos quatro, apenas Bethânia ficou de fora. Com Doces bárbaros, porém, via-se, pela primeira vez, os quatro reunidos num mesmo trabalho, o que só ocorreu novamente em show registrado no documentário Outros (doces) bárbaros (Andrucha Waddington, 2002).

O trabalho a quatro vozes dos doces bárbaros representou rara oportunidade de reunir ingredientes como ousadia, performance de palco, qualidade vocal e sensibilidade poética. Do encontro, resultou disco ao vivo, documentário e uma série de shows. A reunião do grupo veio pouco depois do retorno de Caetano e Gil do exílio em Londres, que, por sua vez, marcou o fim e sucedeu o movimento tropicalista.

"Com amor no coração, preparamos a invasão" - Depois de tantas, tão intensas e recentes mudanças, a invasão era então mais doce, pacífica, mas ainda assim, ou talvez por isso mesmo, provocativa. Embora a subversão ou transgressão deles fosse mais no âmbito comportamental, de costumes, em tempos de ditadura e recém-chegados do exílio, eles eram cobrados quanto a posições políticas. "Por que um grupo tão doce, no atual momento da conjuntura nacional?" - perguntou um jornalista, em entrevista coletiva do grupo, por ocasião do lançamento do show. Esta e outras interessantes passagens são exibidas no documentário Os doces bárbaros (Jom Tob Azulay, 1976), cuja equipe acompanhou o quarteto em apresentações, bastidores, ensaios e entrevistas.

"Tudo ainda é tal e qual e no entanto nada igual" - Essa doce e bárbara invasão, no meio da década de 70, representaria uma espécie de rito de passagem na carreira do quarteto. Como disse Caetano na ocasião, "eu não sei dizer o que é propriamente novo, como temática, nos doces bárbaros, a não ser o fato simplíssimo de estarmos os quatro juntos, sem teorizar muito". De fato, num período pós-tropicalista, que sucedia décadas de intensa e rica produção cultural, inclusive da parte deles, "os quatro cavaleiros do após-calipso" não tinham muito o que inventar, nem tinham essa pretensão.

Todos então com mais de trinta (Bethânia, a mais nova dos quatro, completaria essa idade naquele ano), eles assumiriam, dali pra frente, uma postura mais madura e atingiriam, então, o auge de suas carreiras e um lugar definitivo entre os grandes nomes da nossa música popular. Depois de cantar Caymmi, Gal, com Caras e bocas, chegaria ao topo das paradas com Tigresa, de Caetano, que lá estava com Qualquer coisa. Bethânia logo atingiria a condição de diva, sobretudo com o lançamento do disco Pássaro proibido, que tinha como destaque uma de suas interpretações de maior sucesso, Olhos nos olhos, de Chico Buarque.

Gil acabara de lançar o excelente álbum Refazenda, cujo título reunia ideias bem pertinentes. Primeiro, a percepção de que, se não havia o que inventar, seria possível reprocessar, refazer. Ademais, o prefixo “re” tanto encerrava a ideia de repetição quanto de volta - às raízes, ao interior (ao qual também remete o termo fazenda) do ser e do estar, ao país, no pós-exílio. O mote seria usado novamente em Refavela, seu disco seguinte e também em Refestança, ao vivo com Rita Lee, embora o compositor, ao referir-se à trilogia “Re”, considere Realce o terceiro trabalho da série. Por sinal, o novo disco de Gal, Recanto, com canções de Caetano, poderia bem ser a continuação dessa sequência de Gil, por representar, a partir do título - e da própria concepção - os mesmos conceitos: o cantar de novo, refazer o canto, buscar um novo canto, num novo recanto.

O repertório do disco e do show Doces bárbaros era, quase todo, formado por composições de Caetano e Gil. As interpretações de Bethânia em Um índio (Caetano), Gal e Bethânia em Esotérico (Gil) e os quatro juntos em Atiraste uma pedra (Herivelto Martins / David Nasser), Fé cega, faca amolada (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos) e Os mais doces bárbaros* (Caetano) eram alguns dos belos momentos do encontro. O seu amor (Gil) pregava o amor livre e parodiava slogan ufanista utilizado durante o regime militar: Brasil, ame-o ou deixe-o (“O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar”). Amor, misticismo, sincretismo religioso, natureza, diferentes temas, diferentes formas. Viva qualquer coisa.

 




* Os mais doces bárbaros (Caetano Veloso)

Com amor no coração
Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada

Peixe Espada, peixe luz
Doce bárbaro Jesus
Sabe bem quem né otário
Peixe do aquário nada

Alto astral, altas transas, lindas canções
Afoxés, astronaves, aves, cordões
Avançando através dos grossos portões
Nossos planos são muito bons

Com a espada de Ogum
E a benção de Olorum
Como um raio de Iansã
Rasgamos a manhã vermelha

Tudo ainda é tal e qual
E no entanto nada igual
Nós cantamos de verdade
E é sempre outra cidade velha

25.9.12

Tropicália - por entre fotos, nomes e músicas

Numa época de grande efervescência cultural e política em vários cantos do mundo, seria natural que surgissem divisões, sectarismos e posicionamentos antagônicos, sem meios-termos. Foi nesse clima que surgiu o tropicalismo, um movimento contra movimentos – políticos, sociais, culturais -, não por querer manter o status quo ou promover a estagnação, mas por seguir a cartilha cultural antropofágica e ser contra a uniformidade, o empunhar de uma única bandeira, o rótulo (justamente num período em que a música passava a ser rotulada e surgia o termo Música Popular Brasileira, representado pela sigla MPB).

Quase cinco décadas depois, o movimento tropicalista volta, agora, a ser discutido, com a percepção superior que o distanciamento temporal permite. Está sendo reestudado por um de seus principais representantes, o cantor e compositor Tom Zé, em seu novo disco, Tropicália lixo lógico e, no cinema, é tema de dois documentários: Futuro do pretérito: Tropicalismo Now! (Ninho Moraes e Francisco César Filho) e Tropicália (Marcelo Machado).

Nessa reanálise, Tom Zé imagina um elo entre o tropicalismo e a cultura árabe, desembocando no sertão nordestino que, segundo ele, convive com o “efeito residual de oito séculos de dominação árabe na Península Ibérica”, a qual “recebia uma sofisticada educação, com a cultura moçárabe”, que se refletiu na cultura do sertanejo analfabeto. Tal constatação e a identificação de Tom Zé com a cultura sertaneja, por sua vez, são citadas por Caetano Veloso em artigo publicado em O Globo, sobre o tropicalismo e o novo disco do colega: “... há uma identificação sertaneja que Gil (em larga medida) pode partilhar com Tom Zé, mas Bethânia, Gal e eu, meninos da área da Baía de Todos os Santos, vimos de outro ambiente mental”. Caetano completa que, nesse ambiente, “as formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista, o cordelista ou o aboiador em voz de alcance”.

Toda essa (pro ou con)fusão de ideias e ideais ajuda a explicar como o movimento tropicalista absorveu influências tão dessemelhantes quanto, por exemplo, a Banda de Pífanos de Caruaru e Roberto Carlos.

Fruto de um apurado trabalho de pesquisa, Tropicália, o filme, traz depoimentos, fotos e apresentações da época, numa certa ordem cronológica, em raras e expressivas imagens de arquivo, em que figuram a maior parte dos expoentes tropicalistas, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e Os Mutantes, na música, o artista plástico Hélio Oiticica, criador da obra que inspirou o nome do movimento e aqueles que tinham alguma ligação com sua filosofia, como Gláuber Rocha, no cinema e José Celso Martinez, no teatro.

Entre as raras imagens exibidas, estão a cerimônia de casamento hippie entre Caetano e Dedé, o lançamento do disco símbolo do movimento, Tropicália* ou Panis at circensis, a parada de Gil e Caetano em Lisboa, a caminho do exílio em Londres e uma linda foto de Gal, de cabelos curtos, deitada no colo de Caetano. Outros momentos marcantes exibidos são uma interpretação impecável deste para Asa branca e a participação de Gil na terceira edição do festival da ilha de Wight (Inglaterra, 1970), em que o locutor, ao apresentar os tropicalistas para o grande público, afirma que “a política não permite que eles façam sua música no Brasil”, mas que lá, sim, eles podiam fazê-lo (Depois das três primeiras edições, o festival voltou apenas em 2002 e é realizado até hoje).

O tropicalismo durou quase que apenas um verão, entre 1967 e 1968. Começou com a alegria, alegria dos festivais e findou com os tristes ais da repressão, entre os quais o ai-5 e as posteriores prisão e exílio de Gil e Caetano na Europa, longe dos trópicos. Os preceitos tropicalistas de tolerância às diversas formas de expressão, misturando novo e antigo, rural e urbano, erudito e popular, nacional e estrangeiro, porém, deixaram raízes e frutificaram. Viva a bossa e viva a palhoça, viva Ipanema e viva Iracema, por que não? O mundo é complexo e não se resume a sim ou não, certo ou errado. Como diria Adoniran, além disso, mulher, tem outra coisa. Entre a banda de pífanos de Caruaru e uma banda de rock, tem a banda de Chico, cantando coisas de amor. Nem tudo é bem ou mal, Ben ou Mautner.




Sobre o tropicalismo, leia também: Choque cultural.


* Tropicália (Caetano Veloso)

Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz

Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país

Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça
Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão

O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão

Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis

Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis

Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia

No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim

Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes sobre mim

Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém...

O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem

Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da

10.9.12

Até que a música os separe

Ao longo do tempo, a música passou por várias transformações, desde o modo de interpretação ao surgimento de novos ritmos. A temática predominante, porém, ainda que expressa de diferentes formas, pouco mudou e muitas relações amorosas foram formadas e desfeitas no compasso das canções. Amores de bolero, exacerbados, amores bossa-nova, contidos, todos casam bem com o despertar de emoções que nos provoca a união entre letra e música.

Dentre as composições musicais que tratam do tema das separações e desencontros amorosos, é mais frequente a descrição de um amor que resta unilateral, em que o amante lamenta a ausência da pessoa amada e sonha com um reencontro, indesejado pela outra parte. Ou ainda, de amores que nunca se concretizaram, impossíveis, platônicos. Uma terceira variante vislumbra a separação do ponto de vista da parte que, ainda que a custo, já a assimilou, ou como algo já aceito por ambas as partes, com o grau de desarmonia resultante a definir a trilha sonora dos “ex my loves”, em alto e bom som ou não, como veremos a seguir, numa pequena amostra.

Pode-se considerar como limites desse último e específico espectro musical, de um lado, Vingança*, de Lupicínio Rodrigues (“Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada / Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar”), do outro, Drão, de Gilberto Gil (“Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”). Creio que não se pode ser mais e menos tolerante do que, respectivamente, os personagens de uma e outra música, a segunda inspirada em separação real de Gil, de sua terceira esposa Sandra, a quem chamava Drão. Segundo ele, a canção foi das mais difíceis de compor, justamente por tratar, ao mesmo tempo, de amor e desamor, bem como por seu envolvimento pessoal no caso.

O mundo é um moinho (“De cada amor tu herdarás só o cinismo / Quando notares estás a beira do abismo / Abismo que cavaste com teus pés”) seria páreo para Vingança (pelo que sei, é incerta a versão de que Cartola a teria composto para uma filha ou enteada, o que a excluiria do escopo desta análise), mas, enquanto uma pragueja ferozmente contra o ser (des)amado, a outra “apenas” lhe prevê um futuro sombrio. Seguindo a linha gradativa de conflito, em ordem decrescente de intensidade, perto de Vingança estaria Fracassos, de Fagner (“Não chore se eu disser que já vou / Você quem quis assim, vai sofrer / … / Você tem que chorar se eu sofrer / Você tem que pagar se eu morrer”).

Um pouco mais sutil, mas com doses de rancor e inteligentes pitadas de ironia e sarcasmo, Olhos nos olhos**, de Chico Buarque, é primorosa e tem também seu lugar de destaque na parte de cima da lista. A alusão à obediência, na letra, é formidável (“Quando você me deixou, meu bem / Me disse pra ser feliz e passar bem / Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci / Mas depois, como era de costume, obedeci”). São de Chico, também, outros clássicos do tema, de versos menos ou mais pacíficos, como Trocando em miúdos, com Francis Hime (“Mas devo dizer que não vou lhe dar / O enorme prazer de me ver chorar / Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago / Meu peito tão dilacerado”) e Quem te viu, quem te vê (“Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua”).

No extremo mais amigável do espectro da separação, Drão vem acompanhada de Sonhos, de Peninha (“Não tem desespero não / Você me ensinou milhões de coisas / Tenho um sonho em minhas mãos / Amanhã será um novo dia / Certamente eu vou ser mais feliz”). De mesmo estilo harmonizador, também pode ser posta ao lado das duas a recente Depois, de Marisa Monte, com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (“Depois de sonhar tantos anos / De fazer tantos planos / De um futuro pra nós / Depois de tantos desenganos / Nós nos abandonamos / Como tantos casais / Quero que você seja feliz / Hei de ser feliz também”).

Numa posição intermediária, em que, se não há motivo para vingança, também não o há para sonhos, Ivan Lins e Vítor Martins contribuem para o ranking com Saindo de mim (“Você foi saindo de mim / Devagar e pra sempre / De uma forma sincera / Definitivamente”), Bilhete (“E por fim nosso caso acabou, está morto / Jogue a cópia das chaves / Por debaixo da porta / Que é pra não ter motivos / De pensar numa volta / Fique junto dos seus / Boa sorte, adeus”) e Começar de novo (“Começar de novo / E contar comigo / Vai valer a pena / Já ter te esquecido”), mais um clássico do tema. Por fim, para tornar a análise menos excludente quanto a estilo musical, nessa mesma posição da escala, poderia entrar Baba, de Kelly Key, que, apesar do cruel “Isso é pra você aprender a nunca mais me esnobar”, tem o atenuante “e pra não dizer que eu sou ruim...”.


* Vingança (Lupicínio Rodrigues)

 Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram
Bebendo e chorando
Na mesa de um bar

E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar

Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que tive mesmo de fazer esforço
Prá ninguém notar

O remorso talvez seja a causa
Do seu desespero
Ela deve estar bem consciente
Do que praticou

Me fazer passar esta vergonha
Com um companheiro
E a vergonha
É a herança maior que meu pai me deixou

Mas, enquanto houver força em meu peito
Eu nao quero mais nada
E pra todos os santos vingança (Só vingança, vingança, vingança)
Vingança clamar (Aos santos clamar)

Ela há de rolar qual as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar



**

17.8.12

Composições de destinos

Dentre os filmes nacionais que retratam as dificuldades enfrentadas pelas camadas mais carentes da população, há aqueles que o fazem de maneira explícita, contundente, retratando miséria e violência de forma crua e os que mostram a realidade de maneira mais suave e poética. Na filmografia nacional mais recente, Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998), respectivamente, seriam os melhores representantes de um e outro estilo, ambos válidos nos aspectos de conscientização ou indução a reflexão, mas cada um com suas armas e cada arma atingindo diferentes alvos.

Vencedor de vários prêmios no último Cine-PE – melhor filme nos júris oficial e popular, roteiro (Patrícia Andrade), ator (João Miguel) e ator coadjuvante (Vinícius Nascimento) - À beira do caminho* (Breno Silveira, 2012), é o mais novo exemplar dos filmes do segundo grupo. O ator João Miguel é conhecido pela atuação em Cinemas, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) e Vinícius Nascimento já se destacara, com sua espontaneidade, em Ó paí, ó (Monique Gardenberg, 2007), como um dos irmãos Cosme e Damião, filhos da evangélica dona Joana, que são assassinados, numa das poucas cenas dramáticas do filme.

Breno Silveira, que iniciou carreira como diretor de fotografia, tem colocado a música em destaque, em seus trabalhos como diretor, seja como pano de fundo para a trama, como é o caso de À beira do caminho, seja como elemento-chave, em dois filmes de conteúdo biográfico: 2 filhos de Francisco (2005), sucesso de bilheteria e Gonzaga – de pai pra filho, com estreia programada para 2012, quando se comemora o centenário de nascimento de Luiz Gonzaga.

À beira do caminho é recheado de canções - bem escolhidas - do repertório de Roberto Carlos, desde A distância, no início, a O portão, no final, parcerias dele com Erasmo Carlos. Para driblar dificuldades de liberação de mais composições da dupla, o diretor utilizou o recurso de incluir aquelas do repertório de Roberto que não são de sua autoria, umas na voz dele, como Outra vez (Isolda), umas na voz de outros intérpretes, como Vanessa da Mata em Nossa canção (Luiz Ayrão) e Antônio Marcos em Como vai você (Antônio Marcos / Mário Marcos).

O enredo de À beira do caminho guarda semelhanças com Central do Brasil também no estilo 'filme de estrada' ou 'road movie', que tem como principal característica o desenrolar da trama durante uma viagem, um percurso, sem locação fixa (O estilo voltou a ser destaque com o lançamento recente de outro filme de Walter Salles, On the road, baseado no livro homônimo, de Jack Kerouac, que marcou época nos anos 60). A semelhança estende-se à própria trama, em que um adulto e uma criança têm seus destinos cruzados e estabelecem fortes laços afetivos, enquanto caem na estrada. Similaridades também são percebidas em relação a O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003), outro road movie em que a música de Roberto Carlos está presente.

O argumento, familiar como as composições de Roberto, emociona e convence, com o auxílio de dois recursos infalíveis: criança e música. O menino Vinícius é mais um exemplo de impressionante talento precoce, que traduz os sentimentos do personagem com perfeição tal, que nos atinge em cheio. Emoções à flor da pele, composições de destinos, como cabe a um filme de estrada, de passagens resumidas em frases de para-choque de um caminhão sem destino certo, a conduzir o destino incerto de seus passageiros.



* Sinopse: A emocionante história de João, um homem que encontra na estrada uma saída para esquecer os dramas de seu passado. Por acaso ou sorte, seu caminho se cruza com o de um menino em busca do pai que nunca conheceu. A partir desse encontro, nasce uma bela relação que movimentará o delicado equilíbrio construído por João para enfrentar seus fantasmas. De Breno Silveira, o diretor de 2 Filhos de Francisco, À Beira do Caminho evoca e se inspira em letras de sucessos de Roberto Carlos.


27.7.12

De retratos e paisagens

Além de enxergar que cinema é a maior diversão, podemos encarar a poltrona das salas de exibição como divã de psicanalista. Nessa linha, os filmes de cunho psicológico - aqueles que lidam com a psique e fazem da tela de cinema um grande espelho a refletir nossa imagem - são bem interessantes, muito mais que simples diversão. E num paralelo entre sessões de cinema ou de análise, Woody Allen, pelo conjunto da obra, poderia ser mais um guardião da nossa insanidade mental, junto com Freud, Jung ou Lacan.

Com quase 50 filmes no currículo e mantendo a média de um por ano a essa altura da carreira, o cineasta volta às telas com o filme da vez, Para Roma com amor, atualmente em cartaz (o título em português termina por brincar com as características de palíndromo das palavras roma e amor, o que não ocorre no título original, em inglês, To Rome with love). A obra segue a tendência dos últimos trabalhos de Allen, que alguns críticos de cinema têm classificado como fase guia turístico do diretor, pelo fato de ele ter descartado a cidade de Nova York como locação fixa de seus trabalhos e partido para um city-tour mundial, no que parece estar sendo um golpe de mestre do mestre, em termos de bilheteria.

Nessa fase, iniciada com Match point, em Londres (2005), cada trabalho tem locação numa cidade de um país diferente, com várias cenas externas mostrando as belezas dos lugares e o consequente apoio financeiro proporcionado pelo patrocínio dos respectivos governos, interessados numa divulgação tão rica e abrangente. Outros destaques foram Vicky Cristina Barcelona (2008) e Meia-noite em Paris (2011). Ao mesmo tempo, é perceptível que nos tais filmes turísticos, graças ao apelo estético, atingiu-se um público bem maior, que não era necessariamente fã do diretor em sua fase pré-migratória. Um público que prefere ver Paris a ver a si próprio, ou ainda, prefere ver a si próprio em Paris.

Para Roma com amor é constituído de quatro histórias que se intercalam ao longo da trama e têm em comum apenas a locação, as ruas de Roma. O filme começa com a figura de um guarda de trânsito, num movimentado cruzamento da capital italiana. Como um espectador privilegiado do dia a dia da cidade, é como se, em cada esquina do cruzamento onde se encontra, ele observasse cada uma das tramas paralelas. Duas dessas histórias têm enredos que dariam bons filmes completos ou poderiam render mais.

A primeira é protagonizada pelo próprio Woody Allen, como um diretor de ópera aposentado, pai de uma moça que vai se casar com um italiano, tem boca e vai a Roma, conhecer a família do futuro genro, de inclinação comunista, cujo pai é dono de funerária e excelente cantor de chuveiro. Essa excêntrica combinação de aptidões e tendências, aliada à figura sempre representativa (e bem representada) do ator e diretor como caricatura de todos nós, rende momentos bem divertidos.

Outra história mostra a vida de um pacato e metódico cidadão italiano, que, sem mais explicações - o que torna o fato mais engraçado -, passa a ser visto como celebridade, com inúmeros repórteres à espreita na porta de sua casa, seguindo-o por qualquer lugar e sempre à espera de algum pronunciamento de sua parte, seja sobre o que for. Respostas dele a perguntas banais, como “o que você comeu no café da manhã” ou a cobertura ao vivo de seu barbear são tratadas como furos de reportagem e exaltadas pelos paparazzi como um gol da squadra azurra em final de copa do mundo. A princípio incomodado, com o tempo ele começa a gostar da exposição, momento em que, de maneira igualmente súbita, ele perde o foco da atenção para outro cidadão.

Para um diretor cujo ponto forte sempre foi o diálogo, não tem tanta importância cenário, imagem, paisagem e uma viagem ao exterior não se compara ou não acrescenta muito a outra rumo aos meandros da nossa mente, uma viagem ao interior, retrato de nossa alma, nosso retrato. Bill Gates diria que a troca de retrato por paisagem é só uma questão de orientação, mas, como citei em outra ocasião, os filmes de Woody Allen trazem a palavra como texto e o resto como pretexto. E a troca da imaginação pela imagem não passa de um bom pretexto.



* Sobre Woody Allen, leia também: Nossa imagem na tela grande

9.7.12

Gabriela, sempre Gabriela

Emplacar música em trilha sonora de novelas é bom para os dois lados. De um lado, cantor, compositor e gravadora. De outro, autor, atores e emissora. No meio, um público satisfeito. A gravadora Som Livre percebeu essa harmonia e, desde o início da década de 70, passou a ser responsável pela criação e comercialização de trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. Três décadas depois, em 2001, a gravadora relançou vinte trilhas nacionais de novelas, na coleção Vale a Pena Ouvir de Novo, entre elas Gabriela. Nos últimos dias, a Globo iniciou a exibição da nova versão dessa novela, baseada em obra do escritor Jorge Amado, cujo centenário de nascimento comemora-se este ano.

Comparações entre esta refilmagem e a versão original de 1975 surgiram naturalmente, a começar por quem é a “melhor” Gabriela. Um aspecto, porém, não suscitou comparações, por ter-se mantido equivalente nas duas versões: a trilha sonora, uma das melhores da teledramaturgia brasileira, mantida em sua maior parte e em suas gravações originais. Até melhorou: nove canções foram mantidas, saíram quatro e entraram outras sete, entre elas Lamento sertanejo, uma das obras-primas de Gilberto Gil e Dominguinhos, que tem bastante a ver com o perfil do folhetim, assim como Tema de amor de Gabriela (“Chega mais perto, moço bonito / Chega mais perto, meu raio de sol / A minha casa é um escuro deserto / Mas com você ela é cheia de sol”), composta por Tom Jobim para a adaptação da obra para o cinema.

O período em que foi exibida a primeira versão de Gabriela* coincide com o surgimento de novos talentos na música popular brasileira, representantes de uma geração que, se teve a difícil missão de suceder aquela da era dos festivais, com a responsabilidade de manter o nível, pegou a MPB já amaciada, sobrevivente à revolução da Bossa nova, ao rolo compressor da Jovem guarda e à sacudidela tropicalista e, por conseguinte, mais aberta a novidades. Dessa turma, estão presentes no disco Fafá de Belém (Filho da Bahia), Djavan (Alegre menina**) e João Bosco (Doces olheiras).

O disco começa com a singular interpretação de Maria Bethânia para Coração ateu, de Sueli Costa (“O meu coração ateu quase acreditou / Na sua mão que não passou de um leve adeus / Breve pássaro pousado em minha mão / Bateu asas e voou”). Como foram, quase todas, compostas especialmente para a novela, registradas exclusivamente em sua trilha sonora, as canções de Gabriela reproduzem perfeitamente a atmosfera da obra de Jorge Amado, o que enriquece ainda mais o trabalho. Muitas delas têm a mão de um Caymmi, melhor tradução musical do universo do escritor baiano. De Dorival, tem Adeus (por Walker), Horas (por Quarteto em Cy) e o tema de abertura da novela, Modinha para Gabriela (por Gal Costa). De Dori, Porto (por MPB-4) e Alegre menina (por Djavan), esta em inusitada parceria com Jorge Amado.

Moraes Moreira – à época recém-saído dos Novos baianos, iniciando carreira solo -, Elomar, Alceu Valença e Geraldo Azevedo representavam o bloco dos nordestinos que despontariam com bastante força naquela década, no mercado musical brasileiro. A instrumental Guitarra baiana, de Moraes, pode não soar familiar no nome, mas é uma das músicas mais conhecidas da trilha, que acompanha várias cenas e é a cara da novela. O mesmo ocorre com a também (quase) instrumental São Jorge dos Ilhéus, de Alceu. O compositor pernambucano também está presente numa parceria com o conterrâneo Geraldo Azevedo, interpretada por este, um clássico da dupla, Caravana (“Corra, não pare, não pense demais, repare essas velas no cais, que a vida é cigana, é caravana, é pedra de gelo ao sol, degelou teus olhos tão sós, num mar de água clara”).

Para quem imagina que letra de música com conotação, digamos, sexual ainda não existia quando nós viemos para esse mundo e ainda não atinávamos em nada, Walter Queiroz responde com Quero ver subir, quero ver descer (adaptação: D.P. / R. Santana), que contém versos bem semelhantes a algumas canções dos dias atuais, como: “A mulata é faceira, bota a mão nas cadeiras, bota a mão nos olhinhos, bota a mão no queixinho, bota a mão no umbiguinho, bota a mão no lelelê, cadê você?”, ou ainda: “Bê-a-bá, bê-e-bé, bê-i-bi, quero ver as cadeiras bulir”. O cantor também está presente na trilha como compositor, com Filho da Bahia, interpretada por Fafá de Belém (É dele, ainda, Feijãozinho com torresmo, sucesso na voz de Maria Creuza).
 


* A primeira adaptação televisual de Gabriela, cravo e canela, obra de Jorge Amado com maior número de traduções, na verdade, foi ao ar no início da década de 60, poucos anos depois da publicação do livro, na extinta TV Tupi, antes, portanto, da versão da Rede Globo, que tinha Sônia Braga no papel principal, de 1975.

** Alegre menina (Jorge Amado / Dori Caymmi)

O que fizeste sultão de minha alegre menina
Palácio real lhe dei, um trono de pedrarias
Sapato bordado a ouro, esmeraldas e rubis
Ametista para os dedos, vestidos de diamantes
Escravas para servi-la e um lugar no meu dossel
E a chamei de rainha e a chamei de rainha
O que fizeste sultão de minha alegre menina

Só desejava a campina, colher as flores do mato
Só desejava um espelho de vidro pra se mirar
Só desejava do sol calor para bem viver
Só desejava o luar de prata pra repousar
Só desejava o amor dos homens pra bem amar
Só desejava o amor dos homens pra bem amar

No baile real levei a tua alegre menina
Vestida de realeza, com princesas conversou
Com doutores praticou, dançou a dança faceira
Bebeu o vinho mais caro, mordeu fruta estrangeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira
Entrou nos braços do rei, rainha mais verdadeira

25.6.12

Retirantes de corpo e alma


No litoral ou no sertão, a realidade pode ser dura ou não. Seja onde e como for, a música é uma das melhores formas de mitigar tristezas e catalisar alegrias. Acolhe nas horas tristes, contagia nos momentos alegres. E em se tratando de música do interior (do ser e do estar), poucos músicos conseguiram ser tão igualmente proficientes quanto o mestre Luiz Gonzaga e seus parceiros. Neste ano em que se comemora o centenário de seu nascimento, ele tem sido, merecidamente, lembrado e reverenciado. Desafortunadamente, o ano coincide com a maior seca das últimas décadas no nordeste do país e, ainda que nesse aspecto de forma triste, a desdita da seca faz-nos, uma vez mais, lembrar das canções do rei do baião e de outros compositores nordestinos.

Patativa do Assaré narrou o drama do sertanejo, o exílio forçado e a saudade da terra natal de forma comovente em canções como Vaca Estrela e boi Fubá: “Hoje nas terra do sul, longe do torrão natá / Quando eu vejo em minha frente uma boiada passar / As água corre dos óio, começo logo a chorar / Lembro minha vaca Estrela e o meu lindo boi Fubá / Com saudade do Nordeste, dá vontade de aboiar” e Triste partida*: “Se arguma notícia das banda do norte / Tem ele por sorte o gosto de ouvir / Lhe bate no peito saudade de móio / E as água nos óio começa a cair”.

A fé está presente em algumas canções, de temas igualmente associados aos infortúnios que assolam o sertão: Meu Cariri (Rosil Cavalcanti / Dilu Melo) - “No meu Cariri / Quando a chuva não vem / Não fica lá ninguém / Somente Deus ajuda”, Último pau-de-arara (Venâncio / Corumba / José Guimarães) - “Enquanto a minha vaquinha / Tiver o couro e o osso / E puder com o chocalho / Pendurado no pescoço / Eu vou ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude / Quem sai da terra natal / Em outros cantos não para / Só deixo o meu Cariri / No último pau-de-arara” - e Súplica cearense (Gordurinha / Nelinho) - “Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho / Pedi pra chover, mas chover de mansinho / Pra ver se nascia uma planta no chão / Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe / Eu acho que a culpa foi / Desse pobre que nem sabe fazer oração”.

Dentre as letras de canções que narram o martírio do sertanejo diante da seca, há aquelas que, mesmo retratando de forma fiel o drama, encerram mensagens de esperança e otimismo, muitas delas compostas por Gonzaga e seus parceiros. É o caso dos versos finais da pungente Asa branca (com Humberto Teixeira) - “Quando o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação / Eu te asseguro não chore não, viu / Que eu voltarei, viu, meu coração” -, os quais sugerem a esperança do retorno (à terra natal e aos braços da amada), concretizada em A volta da asa branca** (com Zé Dantas).

Os brasileiros do litoral, nordestinos em particular, ao mesmo tempo em que possuem uma visão distanciada e vivem realidade distinta daquela encontrada no sertão, tem laços afetivos que os unem àquela região, reforçados por meio da música (e da literatura), a qual externa tanto o fascínio pela beleza do lugar ou o jeito de sua gente, quanto a identificação com suas dificuldades. Seguindo uma trilha sonora, as coisas do sertão correm pro mar, assim como o riacho do navio.

O poeta português Fernando Pessoa, um retirante de alma, em um de seus poemas, fala da necessidade de estar fora de si: “Sou um evadido. Logo que nasci, fecharam-me em mim. Ah, mas eu fugi”. Esse mesmo espírito, essa fuga do interior (do ser) – afora as ligações afetivas - é o que conduz o peixe urbano nordestino pela trilha contrária, rumo ao interior (do estar), saindo do mar pro riacho do navio.

É assim que nós, meros habitantes das cidades grandes, retirantes de alma, ficamos aparvalhados e embevecidos com comparações, analogias e metáforas dignas de mestre, que ninguém das terras civilizadas faria com tanta perfeição, simplicidade e precisão, como: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó, a malota era um saco e o cadeado era um nó”, “Automóvel lá nem se sabe se é homem ou se é mulher”, “Tua saia, Bastiana, termina muito cedo, tua blusa, Bastiana, começa muito tarde”. É isso, falar mais o quê?


* Triste partida (Patativa do Assaré)



** A volta da asa branca (Luiz Gonzaga / Zé Dantas)

Já faz três noites que pro norte relampeia
E a asa branca ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas e voltou pro meu sertão
Ai, ai, eu vou me embora, vou cuidar da prantação

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria, dos home trabaiador

Rios correndo as cachoeira tão zoando
Terra moiada, mato verde, que riqueza
E a asa branca tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre, mais alegre a natureza

Sentindo a chuva, me arrecordo de Rosinha
A linda flor do meu sertão pernambucano
E se a safra não atrapaiá meus prano
Que é que há, oh seu vigário, vou casar no fim do ano

27.5.12

Anos dançantes

Nos anos 70, vários talentos que despontaram na década anterior e mudaram os rumos de nossa música, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Elis Regina, Rita Lee, Edu Lobo, Maria Bethânia, Gal Costa e outros, atingiam o auge de suas carreiras, numa profusão de trabalhos impecáveis. Na segunda metade dessa década, porém, uma onda vinda do exterior passou a dividir os acordes com essa música popular brasileira que se encontrava num de seus períodos mais férteis e de maior qualidade: a disco music, inspirada na black music, mas sem uma identificação exclusiva com o movimento negro.

Donna Summer, Gloria Gaynor e os grupos Abba e Bee Gees foram alguns de seus maiores expoentes. As músicas, recheadas de mensagens otimistas, falavam de superação, de dança e movimento. Nas letras em inglês, era bem comum o uso dos verbos dance (dançar) e shake (agitar, balançar): You can dance, you can jive, having the time of your life (Dancing queen - Abba), There is movement all around (…) On the waves of the air, there is dancin' out there (Night fever – Bee Gees), Feel the city breakin' and everybody shakin' and you're stayin' alive (Staying alive – Bee Gees), Let's dance, this last dance tonight (Last dance – Donna Summer). E mais: You should be dancing, Shake your booty, Dance and shake your tambourine. Mas as letras eram o que menos importava...

Interessante, também, certas considerações de gênero nas letras de algumas canções, em se tratando de um estilo marcado justamente pela quebra de paradigmas que reforçam as diferenças sexuais, seja no comportamento, no vestuário ou mesmo na dança, sem a figura do homem como condutor. Considerações como I'm so glad that I'm a woman e I've got to be a macho man conviviam em harmonia e davam a deixa: I am what I am and what I am needs no excuses. Estávamos conversados.

Assim como a Jovem Guarda foi inspirada num estilo que veio de fora do país e representou um contraponto a composições mais elaboradas da MPB, o mesmo ocorreu na década seguinte, com a chamada disco music, embora a variante local deste estilo, representada por nomes como As Frenéticas, Lady Zu e Miss Lene, tenha sido bem menos forte do que aquela do movimento dos anos 60. Por aqui, o estilo musical representou, também, o fim da era das músicas políticas ou de protesto e abriu as portas para os menos políticos, mas não menos extravagantes anos 80, cujas calças bag, camisas coloridas e ombreiras devem muito às meias coloridas de lurex, saltos plataforma e calças boca-de-sino dos 70.

As novas tribos de então, em meio a sinais de fumaça de gelo seco, queriam apenas cair na gandaia. Em vez de boate ou balada, discotecas, como a Studio 54, de Nova York, EUA e, aqui no Brasil, a Dancin' days, do Rio de Janeiro. A casa noturna carioca, de propriedade do produtor musical Nelson Motta e citada por Caetano Veloso em Tigresa – uma ode à atriz Sônia Braga (… Que gostava de política em mil novecentos e sessenta e seis e hoje dança no frenetic Dancin' days) – equivalia ao que representou o Circo Voador, também no Rio, para os anos 80 e inspirou uma canção homônima (do próprio Nelson Motta), síntese do lema da casa, “dance bem, dance mal, dance sem parar”.

A discoteca inspirou a música e ambas inspiraram uma novela da Rede Globo que marcou época, Dancin' days (1978), de Gilberto Braga, com Sônia Braga como protagonista, cuja trilha internacional era repleta de sucessos das pistas de dança e cujo tema de abertura era a citada canção de Nelson Motta, de mesmo nome, interpretada por um grupo musical criado por ele, As Frenéticas. O grupo era formado apenas por mulheres, que trabalhavam como garçonetes na referida casa, entre elas Regina Chaves, que foi casada com Chico Anysio, Sandra Pêra, irmã da atriz Marília Pêra e cunhada de Nelson Motta e Duh Moraes, para os mais novos, a tia Nastácia da versão mais recente do Sítio do Picapau Amarelo.

O ritmo das discotecas inspirava danças e coreografias que, cada vez mais, passavam a fazer parte do pacote musical. No cinema, os musicais Até que enfim é sexta-feira (1978), com Donna Summer no elenco e na trilha sonora (Oscar de melhor canção com Last dance) e, principalmente, Os embalos de sábado à noite (1977), com várias canções do grupo Bee Gees e que revelou o talento de John Travolta como dançarino, ajudaram a consolidar o ritmo dos fins de semana ao redor do mundo. Estava escrito para a posteridade, em letras de néon: há mais coisas entre os requebros de Elvis e os de Madonna do que supõe a van de Ed Motta.


*


12.5.12

Laralaísmos

Li, certa vez, texto que exaltava o laralaiá e suas variações - presentes em várias de nossas canções populares - e mencionava suas ligações mais fortes com o samba. Nas palavras do autor, Daniel Brazil, “Não são aqueles laralaiás que só substituem trechos da letra, mas que tem melodia própria, personalidade e autonomia. Momentos em que o compositor pára, pensa, e diz: - Aqui vou colocar um laralaiá de responsa, pra todo mundo cantar!”. O artigo falava de laralaiás clássicos, como os de Chico Buarque em Quem te viu, quem te vê: Hoje o samba saiu, laralaiáe Minha história: Minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laialaiá (este, segundo o texto, só existe na versão em português da canção original italiana). O assunto é bem interessante e dá muitos panos pras mangas musicais, então, vamos lá laralaiá...

Além do artifício óbvio de cobrir trechos de letras de canções olvidados por nossos ouvidos, o laralaiá e outros termos afins, em geral, suavizam as canções e tornam a interpretação musical menos automática, mecânica e mais emocional, natural, humana, sendo esta sua principal função. E é justamente essa proximidade com o humano e suas emoções que nos toca. A arte imitando a vida. Ao mesmo tempo, o laralaísmo é o que mais diferencia o canto da linguagem falada. Afinal, ninguém costuma dizer coisas do tipo: “passa o açúcar, lalalá” (nem em jantar dançante).

Nesse aspecto de expressar sentimentos, o recurso do laralaiá tem função semelhante às interjeições, os ais e uis, igualmente comuns em canções (As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti, ai), em que cumprem a função de cobrir ou completar trechos melódicos com propriedade e poesia. Como canta Geraldo Azevedo, O charme das canções são suas frases banais, são seus ais, seus uis e ão”*. Tais interjeições estão até em nome de música, como Ai ai ai, de Vanessa da Mata e ôÔÔôôÔôÔ, de Thaís Gulin.

Quando entoado no começo, o laralaiá dá o tom da canção, não apenas no sentido musical, mas quanto a seu estilo. É o que acontece, por exemplo, em Caminhando (Pra não dizer quenão falei das flores), em que o tom de protesto que a canção carrega nos versos seguintes é suavizado pelo laralaiá inicial de Geraldo Vandré. Chico Buarque, em Se eu soubesse, utiliza-o como uma forma mais criativa de reticências, que incorpora rima e cadência: Mas acontece que eu saí por aí e aí, larari, lariri, enquanto o de Vinícius de Moraes, em Pela luz dos olhos teus, é substantivado, com uso dos mesmos requintes: Meu amor juro por Deus que a luz dos olhos meus já não pode esperar / Quero a luz dos olhos meus na luz dos olhos teus sem mais lararará.

Em Prometemos não chorar, clássico do brega, o lá lalalá lalá permeia toda a música, em meio a um chororô não prometido, mas cumprido e a comentários esnobes da fria figura masculina incorporada pelo cantor Barros de Alencar. Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga, gênios da simplicidade, também utilizaram com propriedade esses elementos em suas canções, vide Saudade da Bahia: Ai, ai, que saudade eu tenho da Bahia, do primeiro ou Estrada de Canindé: Ai, ai, que bom, que bom, que bom que é..., A triste partida (Faz pena o nortista, tão forte, tão bravo, viver como escravo no norte e no sul, ai, ai, ai, ai) e o laiá laiá laiá laiá do refrão de Qui nem jiló, do segundo. 

O yeah está mais ligado à linguagem pop, mais universal, como em She loves you (yeah, yeah, yeah), dos Beatles. Por aqui, foi bem empregado, por exemplo, em Fácil, do grupo Jota Quest: Um dia feliz, às vezes, é muito raro, yeeeeeeah. Algumas variações do laralaiá são, também, universais e caem bem noutras línguas. O lailalai do refrão de The boxer (Simon & Garfunkel), por exemplo, toca mais fundo do que qualquer verso que viesse a estar em seu lugar. O mesmo aplica-se ao lalalá (ou nananá) final de Hey Jude, que encerra o sentido metafórico da letra, de deixar uma canção penetrar no coração e, assim, torná-la melhor

Roberto Carlos, com o fim da Jovem Guarda, rompeu a fronteira entre o iê iê iê (ou yeah yeah yeah) e o laralaiá, logo no início dos anos 70, na introdução de Todos estão surdos. Anos depois, em Guerra dos meninos, usou deste artifício como uma canção dentro da canção: Quando em minha porta alguém tocou / Sem que ela se abrisse ele entrou / E era algo tão divino, luz em forma de menino / Que uma canção me ensinou / lá lá lá lá lá lá. Nosso saudoso e amado mestre Chico Anysio exalta, em Rio antigo (Como nos velhos tempos): O Lamartine me ensinando um lalalalalá gostoso e termina essa ode maravilhosa à cidade idem com outro laraiá, igualmente inspirado, que fecha a música com clave de ouro.

Dentre as opções, os ais são especiais e bem luso-brasileiros. O dicionário inFormal, que se apresenta como um dicionário on-line de português onde as palavras são definidas pelos usuários, faz curiosa referência à diferença entre ai, ai - geralmente usado em situações de conforto ou prazer – e ai, ai, ai ou ai, ai, ai, ai, ai, em geral usados para alertar, indicar cuidado ou mesmo recriminar. De fato, em Ive Brussel, de Jorge (ainda) Ben, os ais repetidos, adquirem uma conotação de prazer: Que naquele dia você foi tudo, foi demais pra mim, ai, ai. Sozinho, o ai remete a desejo, lamento: Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ai, que saudade d'ocê. Em linguagem atual: ai, se eu te pego é diferente de ai, ai, se eu te pego, a primeira expressão, um anseio, a segunda, um devaneio.



* O charme das canções (uis e ais) (Geraldo Azevedo / Capinan)

O charme das canções
São suas frases banais
São seus ais, seus uis e ão
Coisa de fazer sorrir
A triste noiva do faquir
Coisa de fazer sonhar
A moça do novo andar
Coisa de fazer parar
O chofer do caminhão
São seus ão meus ais e uis
Coisa de fazer chorar
A natureza morta
O charme das canções
São eu te amo
Tua traição teus punhais
E ai, Jesus, são seus uis
Meus ão e ais
São Jamais, jasmins ou nunca
São nunca mais ou querer teus beijos
Ou serão teus beijos, sempre
E sempre mais
São seus ais, seus uis e ão
Coisas que entortam
Um certo coração